O Estado de S. Paulo
Presidindo sem governar, Bolsonaro obedece
à norma do repouso no sétimo dia como se houvesse produzido nos outros seis.
Trabalhar cansa, escreveu Cesare Pavese no
título de um poema. As mesmas palavras foram usadas como título de um livro
– Lavorare Stanca – publicado em Florença em 1936, quando o poeta
vivia numa casa vigiada pelo regime fascista. É difícil dizer se Jair Bolsonaro
leu esse livro, ou qualquer outro, e se ele realmente gosta de anapestos. Mas
sua passagem pela Presidência parece marcada por aquele título, e, mais que
isso, por um horror à cultura talvez maior que o dos antigos líderes fascistas.
Quanto à cultura, seu desapreço é evidente na rejeição da ciência, no desmonte
do Ministério da Educação e na devastação da área cultural do governo, entregue
a um defensor do uso da Lei Rouanet para financiar a promoção da posse de
armas.
Trabalhar cansa, concordarão letrados e iletrados. O Criador, segundo a Escritura, cessou o trabalho no sétimo dia, convertido depois pelos homens em dia de repouso e oração. Religioso à sua maneira, o presidente Bolsonaro reinterpretou a regra, preservando o repouso e dispensando a causa do cansaço. Assim, depois de mais uma semana improdutiva, o presidente permitiu-se um passeio de moto aquática no Lago Paranoá. Liderou um desfile de embarcações, numa exibição batizada como “lanchaciata”. Foi uma variação da costumeira “motociata”, mas só mudaram os veículos e o ambiente.
Como em outros fins de semana, o presidente
exibiu aos seguidores, aparentemente fascinados, habilidades pouco valorizadas,
pela maioria dos analistas, como atributos para as funções presidenciais.
Franklin Roosevelt, dependente de cadeira de rodas, tirou seu país da
depressão, ajudou a derrotar o nazismo e foi um dos construtores de uma nova
ordem mundial. Único presidente americano a exercer mais de dois mandatos, foi
uma das figuras mais importantes de seu tempo, dentro e fora dos Estados
Unidos, embora pouco eficiente no papel de motociclista ou de piloto de jet
sky.
Sucesso entre bolsonaristas, a “lanchaciata”
foi noticiada em jornais na segunda-feira, 16 de maio. O Estadão destacou
também, na mesma edição, a fila de espera do Auxílio Brasil. Segundo cálculo
baseado em dados de municípios, 1,3 milhão de pretendentes aguardavam
participação no programa, versão bolsonariana – e meramente eleitoreira – do
Bolsa Família. Em janeiro, o Executivo havia anunciado a absorção de toda a
fila. Citado na imprensa em fevereiro de 2020, início do segundo ano do mandato
presidencial, o problema reapareceu na imprensa em 2021 e no começo de 2022,
sempre com mais de 1 milhão de famílias à espera da ajuda.
Os tropeços na execução dos dois programas,
o original e o rebatizado, são característicos de um presidente mais dedicado a
“motociatas” e ações eleitoreiras do que à rotina da administração e da solução
de problemas. Trabalhar cansa, governar envolve trabalho e Bolsonaro conseguiu,
em mais de três anos no Palácio do Planalto, evitar a maior parte desses
incômodos. Os efeitos desse jogo para a maioria dos brasileiros são claramente
indicados por alguns números.
Com 11,9 milhões de desempregados no
primeiro trimestre, 11,1% da força de trabalho, o Brasil se mantém como um dos
países mais assolados pela desocupação, raramente superior a 7% nas economias
emergentes e desenvolvidas.
O País também se destaca pelo aumento do
custo de vida. A inflação, repetem Bolsonaro e seu ministro da Economia, é hoje
um problema mundial, mas a história completa é mais complicada. A alta anual de
preços passou de 7,8% em fevereiro para 8,8% em março na média de 38 países da
Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE). Mas só em
oito desses países a taxa acumulada superou 10%. Em 24, nem chegou a 8%. No
Brasil, a inflação acumulada subiu de 10,54% em fevereiro para 11,3% em março e
12,13% em abril. Combinado com o desemprego e com os juros altos, esse
encarecimento da cesta de consumo é devastador para dezenas de milhões de
famílias.
Tudo vai melhorar, promete o ministro da
Economia. Mas sua equipe elevou de 6,55% para 7,9% a inflação estimada para o
ano, e no mercado há quem projete mais uma taxa em torno de 10%. Além disso, o
ministério manteve em 1,5% a previsão de crescimento econômico em 2022, cerca
de metade da expansão global (3,1%) indicada pela ONU.
Esses números dão ideia de como estará o
País em janeiro, quando o presidente eleito assumir seu posto. Mas o quadro
deve incluir, além da estagnação econômica, da alta inflação e do desemprego
elevado, compromissos fiscais assumidos com objetivo eleitoral. Está
pressuposta, naturalmente, a normalidade institucional, ameaçada por um
presidente em conflito com outros Poderes e, mais amplamente, com a ordem
democrática. Não haverá surpresa se, derrotado nas urnas, ele tentar a
contestação do processo eleitoral, como fez nos Estados Unidos seu guru Donald
Trump. Também isso combina com o escasso apego de Bolsonaro ao trabalho.
Afinal, é difícil trabalhar e, ao mesmo tempo, se exibir para seguidores
dispostos a ouvir ataques ao Judiciário e ameaças à democracia.
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