O Globo
Muitos crimes têm sido cometidos em nome da
liberdade no Brasil atual. Trancafiar as crianças em casa com seus pais e
preceptores foi o crime da semana aprovado pela Câmara dos Deputados. É um
retrocesso de séculos. Parlamentares que se dizem liberais tiram a liberdade da
criança e do adolescente de exercer seus direitos à educação plural e à
convivência com pessoas da sua idade. Alivia um pouco o horror saber que alguns
municípios estão na direção certa. Priscila Cruz, do Todos pela Educação, cita
Sobral, Teresina e Recife como cidades que aumentaram o números de horas de
aula para compensar o atraso da pandemia.
É trágico o legado da pandemia na educação. É assim no mundo todo, mas um relatório divulgado pelo FMI mostrou que o Brasil é o terceiro pior país do G-20 em termos de impacto da pandemia. Está na frente apenas da Indonésia e do México em termos de impacto da pandemia. Olhando pela economia, o Fundo diz que se o efeito da Covid-19 não for corrigido, o Brasil sentirá os reflexos na renda e na desigualdade. Foram 279 dias sem aula.
Nota técnica do Todos pela Educação de
fevereiro, elaborada com os microdados da Pnad, concluiu que aumentou em um
milhão o número de crianças que não aprenderam a ler entre seis e sete anos. O
percentual de crianças pretas e pardas que estavam nessa situação era de 28,8%
e 28,2% em 2019 e foi para 47,4% e 44,5% em 2021. É preciso correr para
corrigir o estrago no processo de aprendizagem. No governo Fernando Henrique,
houve a campanha “Toda criança na escola”. Esse movimento, que continuou nos
governos do PT, quase universalizou a escolarização. Agora o índice está em
queda pela primeira vez, explicou Naércio Menezes em artigo no “Valor”, na
sexta-feira. Nesse país cheio de fraturas expostas na educação, a Câmara
aprovou o projeto da educação domiciliar. Alguns parlamentares que se dizem
liberais falaram que votaram em nome da liberdade dos pais.
Que liberdade terá a criança e o
adolescente na formação das suas habilidades socioemocionais? Trancadas em
casa, terão dificuldades em desenvolver sua própria visão de mundo. Perguntei à
Priscila Cruz o que seria uma agenda real para a educação?
— Os países que estão preocupados em
recuperar a perda da pandemia lançam mão de políticas compensatórias. É o que
estão fazendo alguns municípios brasileiros. Se as crianças ficaram quase dois
anos fora da escola, com ensino remoto insuficiente, é preciso que fiquem agora
mais tempo na escola. Sobral, onde o ensino já era bom, está investindo em
tempo integral. Teresina, que é uma gestão muito bem feita, está apostando em
tempo integral e recuperação. É o exato oposto do homescholling. Essas cidades
estão começando a reforçar o Fundamental II, mas a gente tem que lembrar que a
criança que está no terceiro ano hoje é aquela que passou o primeiro e o
segundo anos na pandemia, que é o período da alfabetização. No Recife, a
prefeitura imediatamente expandiu o tempo de aulas para o terceiro ano.
Entendeu que a criança mais prejudicada é quem tem hoje entre 8 e 9 anos porque
tinha entre 6 e 7 durante a pandemia.
O Brasil vai assim, aos poucos, e de forma
descentralizada, resistindo aos abusos diários deste governo. Mas o trágico é
que 264 deputados, por uma visão medieval, por conivência, ou por
irresponsabilidade, aceitaram cometer crime contra as crianças brasileiras.
Ignoraram que há uma emergência na educação, inverteram a prioridade e votaram
a favor de um projeto obscurantista que vai na direção oposta da que se deve
ir. É preciso mais escola e não menos escola.
Em nome da liberdade, o presidente
facilitou o acesso às armas, inclusive pesadas, permitiu a invasão de terras
indígenas, estimulou o desmatamento, a grilagem e o garimpo ilegal. Criou uma
falange antivacina e anticiência. Bolsonaro ataca o Supremo, tenta diariamente
intimidar a Justiça Eleitoral, comprou com orçamento o comando da Câmara,
capturou a Procuradoria-Geral da República e usa as Forças Armadas.
O projeto diz que a educação pode ser
conduzida pelo pai, pela mãe ou por um “preceptor”. “Essa é a palavra do
arrepio”, diz Priscila Cruz. Um líder fundamentalista ou um chefe de facção
podem acabar escolhidos pelas famílias para essa função. Quantos crimes
Bolsonaro e seus cúmplices vão ainda cometer usando o nome da liberdade?
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