O Estado de S. Paulo
Metáforas de ‘Tartufo’ se aplicam aos hipócritas que nos cercam
Alguém só um pouco mais crescido que o
menino que aporrinha o pai até descobrir o significado da palavra “plebiscito”,
no antológico conto de Artur Azevedo, perguntou-me o que quer dizer “tartufo”.
Não a homônima guloseima à base de chocolate, que ele já conhecia sob a forma
de sorvete, mas os bípedes dignos desse epíteto; ou seja, aqueles indivíduos
dados a cometer tartufarias ou tartufices. Gente que, evidentemente, não
presta.
Como são muitos ao nosso redor, vez por
outra não resisto à tentação de aludir ao traste que lhes deu origem e nomeada,
substituindo com seu eufônico nome – Tartuffe (entre nós, Tartufo) – adjetivos
bem mais corriqueiros como hipócrita, fingido, dissimulado, impostor, velhaco,
espertalhão.
As gerações mais velhas e mais bem escolarizadas sabem de onde veio a palavra e quem a celebrizou: Molière, o maior comediógrafo da França, o Shakespeare gaulês. Dos tipos inesquecíveis que ele imortalizou no palco – o avarento Harpagão, o hipocondríaco Argan, o palerma Orgon – o farisaico Tartufo foi, et pour cause, quem mais impacto popular causou. Nenhuma outra de suas peças foi tão encenada desde sua primeira apresentação, em 12 de maio de 1664.
Embora os 400 anos de Molière, comemorados
desde janeiro com centenas de montagens mundo afora, já justificassem este
raquítico comentário, o que em verdade me moveu foi a permanente atualidade de
Tartufo ou O Impostor, vale dizer a universalidade do que seu protagonista
representa.
Vivemos num mundo envenenado pela
hipocrisia, que, basicamente, é o ato de exigir dos outros o que não se
pratica.
Temos na Presidência o mais desinibido
Tartufo de nossa história republicana, useiro e vezeiro em atribuir a
adversários vilanias só por ele afinal praticadas, como a oficialização da
mamata e a primazia da promiscuidade política. O indulto a um bandido amigo,
sua mais recente tartufaria, vale lembrar, foi artimanha herdada dos golpistas
fardados de 64, que, em nome de “ideais democráticos”, aqui implantaram uma
ditadura, o suprassumo da tartufice, que durou 21 anos e calou e matou muita
gente.
Assisti a uma montagem de Tartufo no Teatro
Municipal do Rio e a outra em sua ribalta cativa, a Comédie Française, muito
depois de ter lido a peça como parte do currículo de francês do colégio. Era
bem outra a qualidade do ensino público.
Já que se tratava de um clássico da
comédia, ao comentário por escrito exigido pela professora dei um título
brincalhão. Inspirado pelo maior sucesso do teatro de revista daquele ano, Bom
Mesmo É Mulher, do grande Max Nunes e dois coautores, não pensei duas vezes, e
lasquei “Bom Mesmo É Molière”. Aprovado com louvor.
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