O Estado de S. Paulo
No respaldo à atuação da agência, Brasil
está em consonância com os princípios que regem suas relações internacionais.
Os refugiados e o drama da precariedade da
sua situação são um dos grandes temas da vida mundial. É impactante a escala
numérica dos que se encontram nesta condição. Estima-se que neste ano 100
milhões de pessoas precisam de amparo, que não encontram no âmbito interno dos
seus Estados.
A palavra refúgio, do latim refugium,
abrigo, é, por si só, reveladora do seu significado. Indica os que, em razão de
tensões e conflitos da vida internacional e nacional, precisam procurar abrigo
fora de seu país para escapar de sérios perigos que enfrentam.
São perigos de perseguições que alcançam e discriminam etnias, religiões, povos, grupos sociais e políticos. Perigos à vida, que resultam de conflitos armados, como na Síria, no Afeganistão, na Ucrânia. Perigos originários de desastres ecológicos. Na nossa vizinhança, a situação da Venezuela vem levando a um fluxo de refugiados que procuram abrigo no Brasil.
O tema dos refugiados surge no século 20,
após a Primeira Guerra, com as transformações da ordem mundial do século 19. A
desagregação dos impérios multinacionais e o surgimento de novos Estados
trouxeram uma dissociação entre Direito dos Povos e Direitos Humanos, com a
realidade de minorias nacionais, étnicas, linguísticas, religiosas no âmbito de
muitos Estados, que passaram a requerer proteção própria porque enfrentavam o
perigo xenófobo de perseguições e discriminações.
Essa situação se agravou com a cassação em
massa da cidadania e da nacionalidade na Europa, por razões políticas da União
Soviética comunista e pelo racismo antissemita da Alemanha nazista. Assim,
elevou-se o contingente de deslocados no mundo que foram expulsos, como aponta
Hannah Arendt, da trindade Estado-povo-território, sem o direito a ter
direitos. Tornaram-se indesejáveis, não documentados, potencialmente
supérfluos.
A Sociedade das Nações, a antecessora da
ONU, foi uma primeira tentativa de organizar a ordem mundial em moldes mais
cooperativos e normativos. Tomou iniciativas para conter e amainar a
precariedade da situação dos deslocados no mundo. Foram notoriamente
insuficientes, mas constituíram o antecedente do tema dos refugiados na ONU.
Esta tem limitações para assegurar erga omnes suas inovadoras
aspirações normativas na área dos Direitos Humanos, pois não é um governo
mundial. É organização internacional interestatal de vocação universal, com
personalidade jurídica própria, distinta da de seus membros.
A ONU é um tertius – uma
instância de mediação e interposição entre os Estados. Seu papel, como lembrava
Dag Hammarskjöld – seu notável secretário-geral –, não é elevar-nos ao céu, mas
procurar salvar-nos do inferno. É o que a ONU faz no trato dos refugiados
construindo papel próprio para um tertius nesta matéria.
Este tertius é a Agência da ONU
para Refugiados (Acnur), instituição de garantia que exerce no plano mundial
função de proteção diplomática e consular da qual carecem os refugiados.
A Acnur foi criada em 1950 e iniciou as
suas atividades em 1951. Seu trabalho é independente, apartidário e não
seletivo. Pauta-se pelos princípios contemplados pelos Direitos Humanos e pela
especificidade das Convenções de Direito dos Refugiados. Atua em três frentes:
salvar vidas, assegurar direitos e construir futuro para refugiados. O seu
mandato está voltado para amparar a vulnerabilidade dos deslocados no mundo.
A Acnur recebeu duas vezes o Prêmio Nobel
da Paz, um reconhecimento da qualidade de sua atuação, cabendo destacar sua
presença atual em 135 países. Para realizar seus projetos e programas, o
orçamento da Acnur precisa ir muito além da ONU. Requer a solidariedade de
doações da sociedade civil e do setor privado, hoje contempláveis na agenda
ESG. É um mérito de governança da Acnur a eficiência dos gastos: 86% das
doações que recebe vão diretamente para a ajuda humanitária na ponta.
O Brasil endossou a Convenção de 1951 sobre
Refugiados e o seu Protocolo Adicional de 1967. Este reconheceu a natureza
global do tema. O Brasil teve abertura para esta dimensão global. A Lei n.º
9.474 (22/7/1997), sancionada por Fernando Henrique Cardoso, definiu mecanismos
para construtiva implementação no plano interno do estatuto dos refugiados.
Em coordenação com o governo federal,
iniciada na presidência Temer e com o apoio e a solidariedade do setor privado
e da sociedade civil, tem sido notável o trabalho da Acnur no atendimento dos
refugiados da Venezuela.
A posição do Brasil, da sociedade civil e
do setor privado em respaldo à atuação da Acnur está em plena consonância com
os princípios constitucionais que regem suas relações internacionais: a
prevalência dos Direitos Humanos e a concessão do asilo. Estes, por sua vez,
explicitam que também em matéria de refugiados, como observou Hannah Arendt,
“somos do mundo e não estamos apenas nele” e que a defesa de uma paz
sustentável está interligada à afirmação internacional da interdependência e
indivisibilidade dos Direitos Humanos e ao valor do pluralismo e da tolerância
da hospitalidade universal.
*Professor emérito da Faculdade de Direito da USP, foi ministro de Relações Exteriores (1992; 2001-2002)
Nenhum comentário:
Postar um comentário