O Estado de S. Paulo
Com toda a certeza, uma frente unicamente
de esquerda não bastará para reconstruir o País a partir de janeiro, em caso de
vitória.
O debate sobre frentes e alianças, que
compõe a rotina da política nos momentos de relativa calmaria, acende-se
verdadeiramente nas situações em que se percebem ameaças existenciais à
convivência civil e à natureza democrática dos Estados, como é evidente no caso
brasileiro, e não só nele. Já existe, a propósito, um amplo inventário de
exemplos clássicos que de certa forma nos assediam teimosamente quando buscamos
parâmetros e termos de comparação. Examinemos um deles.
Weimar e a corrosão da sua república
estiveram, há um século, no cerne da vaga reacionária que levaria ao nazismo. A
cisão na esquerda – a partir dos anos 1920, dilacerada entre o “reformismo”
social-democrata e o “revolucionarismo” bolchevique – abriria as portas para o
nacional-socialismo. Do ponto de vista dos comunistas, os social-democratas não
passavam de linha auxiliar da extrema-direita. Eram, pura e simplesmente,
“social-fascistas”, ainda piores do que os adeptos declarados do nazismo.
A catástrofe que se evidenciaria depois produziu uma reviravolta na política de alianças. Desta vez, a precisa definição do adversário comum permitiu agregar em frentes populares não só os “irmãos inimigos”, socialistas e comunistas, como também uma ampla gama de liberais e democratas. Uma operação virtuosa, que levaria à extraordinária luta comum contra o nazifascismo. Mas, convenhamos, não tinha virtude alguma o fato de o comunismo no poder não se abrir aos ventos democratizantes advindos da frente, instalando assim a contradição grave: uma clarividente política de alianças “para fora”, uma repressão ensandecida “para dentro”, como nos processos de Moscou e demais crimes do comunismo stalinista.
Trata-se de situações paradigmáticas que,
com nomes e circunstâncias diversas, se repetiriam para a esquerda ao longo do
século. No Brasil dos anos 1930, a política de frente – a “aliança nacional
libertadora” – abdicaria do seu traço inicial de mobilização popular para se
perder numa aventura militar em tardio molde tenentista. Algumas décadas
depois, o partido-motor da “aliança nacional” leria em outros termos a
conjuntura de desafio existencial inerente ao regime militar. De fato, o então
PCB, mesmo clandestino, contribuiria para a definição da resistência ao regime
segundo o modelo da frente única ou, o que é aproximadamente a mesma coisa, da
frente democrática.
A História nem sempre – ou quase nunca –
segue rotas e traçados predefinidos. A frente ampla aos poucos tomaria corpo no
MDB e na programática valorização da sociedade civil, mas seu propositor à
esquerda estava limitado pela marca de nascença: a relação com a União
Soviética e seu “socialismo de Estado”, em vias de esgotamento. Mesmo assim,
aquela frente inaugurava um novo modo de proceder e de pensar a política, a ser
recolhido e levado adiante pelos outros atores. Em palavras sintéticas, a
política como hegemonia em ambiente plural e democrático; como capacidade de
influenciar os demais e, também, deixar-se influenciar. Afinal, segundo a frase
famosa, o educador – o partido que inova e transforma – também precisa ser
educado.
A exigência a ser feita ao PT, eixo
principal da esquerda pós-comunista e novamente protagonista das eleições de
2022, nasce exatamente deste conjunto de problemas. Pode bem ser que não baste
uma frente unicamente de esquerda para ganhar em outubro e, com toda a certeza,
ela não bastará para reconstruir o País a partir de janeiro, em caso de
vitória. A extensão e a profundidade dos danos trazidos por quatro anos de
governo Bolsonaro à economia e à sociedade – e à própria ideia de bem comum –
ainda não estão sequer delimitadas, mas já se sabe que não são de pouca monta.
Este quadro sombrio é o que nos adverte contra uma visão da realidade que
oponha, num jogo de soma zero, esquerda e direita, como se não houvesse atores
legítimos ao centro e mesmo à direita, com forte inserção, capacidade de
formulação e agregação.
Impossível prever se a ampla convergência
capaz de rodear com um cordão sanitário a direita “rupturista” se dará no
primeiro ou no segundo turnos. Trata-se, aqui, de reivindicar que toda e
qualquer ação se inspire na ideia de que, acima das rivalidades entre
candidatos e partidos, existe a oposição básica entre democracia e autocracia,
que está hoje por toda parte como a principal contradição política do nosso
tempo. E, como sabemos, há também autocratas e populistas de esquerda, o que é
uma advertência severa contra pretensões de monopólio da verdade. Aquela
contradição é que permite riscar um campo comum, do qual só se autoexclui quem
deliberadamente abandona a linguagem da política e adere à apologia das armas
e, portanto, à linguagem da violência.
A República de Weimar – dizem – caiu porque
era, no fundo, uma democracia sem democratas. Essa fragilidade, associada à
imaturidade conflituosa das forças que deveriam defendê-la, foi a precondição
da tragédia que se seguiu. Entre nós, a repetição de uma infeliz sequência
deste tipo teria, talvez como nunca antes, todos os atributos da mais perigosa
das chanchadas.
*Tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das Obras de Gramsci no Brasil
2 comentários:
Luiz Sérgio, como sempre, nos alerta. Por outro lado, com nossa estupidez paquidérmica e nosso histórico "farniente", nós nos limitamos a concordar sem tomar nenhuma atitude. É nossa inércia que põe essa gente no poder.
Vai ser muito difícil reconstruir o Brasil.
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