domingo, 19 de junho de 2022

Míriam Leitão: Bruno na saga do voto indígena

O Globo

O helicóptero black hawk do Exército estava ao fundo. Na frente dele, a juíza e a procuradora eleitorais de Atalaia do Norte, militares, alguns servidores, um líder indígena e, um pouco atrás dele, o indigenista Bruno Pereira. Em primeiro plano, caixas com urnas eletrônicas e a inscrição “Justiça Eleitoral”. Era a eleição de 2014 e eles comemoravam um feito. Pela primeira vez haveria seções eleitorais dentro da Terra Indígena Vale do Javari. Para isso haviam trabalhado duro a juíza Bárbara Folhadela, Bruno Pereira e lideranças indígenas. O Exército entrou na parte decisiva. De helicóptero, os militares levaram as urnas às aldeias mais distantes. Para as outras, as urnas foram de barco.

Poucos anos nos separam dessa foto tirada no aeroporto de Tabatinga. Hoje, o presidente da República ataca a urna eletrônica e a Justiça Eleitoral, militares em posição de poder demonstram apoiá-lo, os indígenas nunca estiveram tão ameaçados, e Bruno está morto. Aquele Brasil que une Justiça Eleitoral, militares, urna eletrônica, indígenas e Funai parece distante.

— Eu realizei eleições em 2008 e 2010. Os indígenas tinham que se deslocar até Atalaia do Norte. Faziam questão de participar do processo democrático, um pleito deles. Para chegar, amarravam uma canoa à outra e iam pela correnteza do Rio. Levavam comida que haviam plantado, macaxeira, pupunha. Depois, não tinham como retornar, esperavam conseguir o combustível. Apareciam políticos que diziam “vota em mim, que dou o combustível”. Eu sempre encontrava uma forma de ajudá-los a retornar. Gastavam uns 15 dias nesse esforço de votar e voltar. Em 2012, eu estava de licença e aconteceu uma tragédia — disse a juíza Bárbara Folhadela.

Os terríveis fatos de 2012 viraram notícia. Depois de votar, os indígenas iniciaram a luta do retorno, mas não foi fácil conseguir ajuda. Os pais haviam levado crianças com eles. Ficaram todos no Porto de Atalaia. As crianças tomaram banho nas águas sujas do porto, beberam aquela água. Contraíram infecções. Cinco crianças indígenas morreram:

— Quando reassumi, o pleito dos indígenas para participar do processo eleitoral era forte. O sacrifício das crianças aumentou a exigência de exercer a cidadania nas aldeias. Foi quando tive muitas reuniões com o Bruno. Foram dois anos de trabalho árduo. Ele fazia questão de levar as lideranças indígenas para as reuniões do plano estratégico de instalação das seções nas aldeias.

Tudo era remoto e difícil. Cada detalhe era pensado. Bruno foi contando para a Justiça Eleitoral como tornar possível o sonho dos indígenas. Informou sobre as etnias, seus modos e costumes, a geografia da região, a melhor forma de acessar o Vale. Mostrava tanta intimidade com tudo que impressionou a Justiça Eleitoral.

— Ele disse que teríamos que usar as calhas dos rios. Mostrou as aldeias em posição estratégica, que tinham mais estrutura para serem as sedes das seções. Sabia qual etnia conflitava com outra, a melhor escolha dos mesários. Os presidentes das mesas seriam os professores das aldeias. Sem ele eu não saberia fazer isso — disse a juíza.

Bárbara acumulou as funções de juíza de Atalaia e juíza eleitoral, de 2007 a 2015. Neste período, houve situações delicadas que Bruno ajudou a resolver.

— Aconteceu uma vez um fato difícil. Chegou de outra comarca uma precatória para devolver uma criança indígena que havia sido levada pelo pai para a aldeia, sem autorização da mãe. Ela, também indígena, morava na cidade. A aldeia era de difícil acesso. Bruno foi lá, ficou dias na aldeia e convenceu o pai a deixar a criança voltar. Eles respeitavam muito a autoridade do Bruno — narra Bárbara.

Ele era coordenador da Funai no Vale do Javari. Função que exerceu por quase dez anos.

— Bruno era o elo da Justiça com os indígenas. Em todas as situações. Temos antropólogos, mas só ele sabia. Era impressionante ver o respeito por ele e como ele respeitava os indígenas. Hoje, ouço que ele estava numa aventura. Não é verdade. Eu preciso testemunhar que a trajetória dele foi muito maior do que a gente imagina. Bruno não pode ser esquecido, nem a imagem dele pode ser maculada — disse a juíza, hoje em Manaus.

Aquela saga do voto indígena terminou bem. Na eleição de 2014, os indígenas votaram nas seis seções instaladas no Vale. Hoje, são sete. Em 2016, elegeram o primeiro representante indígena para a Câmara de Vereadores de Atalaia do Norte.

 

Um comentário:

ADEMAR AMANCIO disse...

História bonita e triste ao mesmo tempo.