O Globo
O helicóptero black hawk do Exército estava
ao fundo. Na frente dele, a juíza e a procuradora eleitorais de Atalaia do
Norte, militares, alguns servidores, um líder indígena e, um pouco atrás dele,
o indigenista Bruno Pereira. Em primeiro plano, caixas com urnas eletrônicas e
a inscrição “Justiça Eleitoral”. Era a eleição de 2014 e eles comemoravam um
feito. Pela primeira vez haveria seções eleitorais dentro da Terra Indígena
Vale do Javari. Para isso haviam trabalhado duro a juíza Bárbara Folhadela,
Bruno Pereira e lideranças indígenas. O Exército entrou na parte decisiva. De
helicóptero, os militares levaram as urnas às aldeias mais distantes. Para as
outras, as urnas foram de barco.
Poucos anos nos separam dessa foto tirada no aeroporto de Tabatinga. Hoje, o presidente da República ataca a urna eletrônica e a Justiça Eleitoral, militares em posição de poder demonstram apoiá-lo, os indígenas nunca estiveram tão ameaçados, e Bruno está morto. Aquele Brasil que une Justiça Eleitoral, militares, urna eletrônica, indígenas e Funai parece distante.
— Eu realizei eleições em 2008 e 2010. Os
indígenas tinham que se deslocar até Atalaia do Norte. Faziam questão de
participar do processo democrático, um pleito deles. Para chegar, amarravam uma
canoa à outra e iam pela correnteza do Rio. Levavam comida que haviam plantado,
macaxeira, pupunha. Depois, não tinham como retornar, esperavam conseguir o
combustível. Apareciam políticos que diziam “vota em mim, que dou o
combustível”. Eu sempre encontrava uma forma de ajudá-los a retornar. Gastavam
uns 15 dias nesse esforço de votar e voltar. Em 2012, eu estava de licença e
aconteceu uma tragédia — disse a juíza Bárbara Folhadela.
Os terríveis fatos de 2012 viraram notícia.
Depois de votar, os indígenas iniciaram a luta do retorno, mas não foi fácil
conseguir ajuda. Os pais haviam levado crianças com eles. Ficaram todos no
Porto de Atalaia. As crianças tomaram banho nas águas sujas do porto, beberam
aquela água. Contraíram infecções. Cinco crianças indígenas morreram:
— Quando reassumi, o pleito dos indígenas
para participar do processo eleitoral era forte. O sacrifício das crianças
aumentou a exigência de exercer a cidadania nas aldeias. Foi quando tive muitas
reuniões com o Bruno. Foram dois anos de trabalho árduo. Ele fazia questão de
levar as lideranças indígenas para as reuniões do plano estratégico de
instalação das seções nas aldeias.
Tudo era remoto e difícil. Cada detalhe era
pensado. Bruno foi contando para a Justiça Eleitoral como tornar possível o
sonho dos indígenas. Informou sobre as etnias, seus modos e costumes, a
geografia da região, a melhor forma de acessar o Vale. Mostrava tanta
intimidade com tudo que impressionou a Justiça Eleitoral.
— Ele disse que teríamos que usar as calhas
dos rios. Mostrou as aldeias em posição estratégica, que tinham mais estrutura
para serem as sedes das seções. Sabia qual etnia conflitava com outra, a melhor
escolha dos mesários. Os presidentes das mesas seriam os professores das aldeias.
Sem ele eu não saberia fazer isso — disse a juíza.
Bárbara acumulou as funções de juíza de
Atalaia e juíza eleitoral, de 2007 a 2015. Neste período, houve situações
delicadas que Bruno ajudou a resolver.
— Aconteceu uma vez um fato difícil. Chegou
de outra comarca uma precatória para devolver uma criança indígena que havia
sido levada pelo pai para a aldeia, sem autorização da mãe. Ela, também
indígena, morava na cidade. A aldeia era de difícil acesso. Bruno foi lá, ficou
dias na aldeia e convenceu o pai a deixar a criança voltar. Eles respeitavam
muito a autoridade do Bruno — narra Bárbara.
Ele era coordenador da Funai no Vale do
Javari. Função que exerceu por quase dez anos.
— Bruno era o elo da Justiça com os
indígenas. Em todas as situações. Temos antropólogos, mas só ele sabia. Era
impressionante ver o respeito por ele e como ele respeitava os indígenas. Hoje,
ouço que ele estava numa aventura. Não é verdade. Eu preciso testemunhar que a
trajetória dele foi muito maior do que a gente imagina. Bruno não pode ser
esquecido, nem a imagem dele pode ser maculada — disse a juíza, hoje em Manaus.
Aquela saga do voto indígena terminou bem.
Na eleição de 2014, os indígenas votaram nas seis seções instaladas no Vale.
Hoje, são sete. Em 2016, elegeram o primeiro representante indígena para a
Câmara de Vereadores de Atalaia do Norte.
Um comentário:
História bonita e triste ao mesmo tempo.
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