domingo, 19 de junho de 2022

Elio Gaspari: O século em que o Brasil atolou

O Globo / Folha de S. Paulo

O inglês foi aconselhado a não deixar o barco, pois os traficantes ofereciam uma recompensa a quem o esfaqueasse. Vale do Javari em 2022? Não, Salvador, 1843. Não se sabe se o comandante Hoare, do navio Dolphin, desembarcou, mas ele era malvisto na região.

Chegou às livrarias o terceiro e último volume de “Escravidão”, de Laurentino Gomes. Vai “Da Independência à Lei Áurea”. Retrata o apogeu e declínio do regime escravocrata que sustentou o Império, amarrando o Brasil ao atraso. Até 1850, a elite nacional não só vivia às custas da escravidão, estava também associada ao contrabando de negros escravizados trazidos d’África. O tráfico negreiro fazia fortunas ofendendo as leis do país e os tratados internacionais firmados pelo Império. O Brasil era ao mesmo tempo o maior produtor de café do mundo e a maior nação negreira. D. Pedro I chamava a escravidão de “cancro” e em 1830 anunciou que o tráfico havia acabado. Era mentira. Seu filho não dava títulos nobiliárquicos aos traficantes, mas era só. O andar de cima e seu poder assentavam-se na escravidão e no contrabando. Em 1843, vendia-se no Rio um negro por vinte vezes o preço pago ao comprá-lo na África. Até 1850, chegaram ao Brasil pelo menos 700 mil africanos escravizados. O tráfico era ilegal, mas Manoel Pinto da Fonseca, responsável por um terço dos desembarques clandestinos, jogava cartas com o chefe de polícia do Rio.

Laurentino compôs um magnífico painel mostrando esse tempo. Baseado na bibliografia de quatro continentes, valeu-se da argúcia de repórter para jogar luz sobre grandes personagens. Em 1822, aos 18 anos, José Joaquim de Souza Breves estava na comitiva do príncipe Pedro às margens do Ipiranga, fez fortuna e foi o Rei do Café. Teve noventa propriedades, frota negreira e seis mil negros escravizados. Morreu em 1889, um ano depois da abolição e 46 dias antes da proclamação da República. Do outro lado do Atlântico, Laurentino mostrou Francisco Félix de Souza, o baiano Chachá, que no Daomé se tornou o maior traficante de escravos da época. Ou ainda Ana Joaquina dos Santos Silva, a Rainha do Tráfico de Angola, com seu palacete de 22 janelas em Luanda. Numa visita ao Rio, ela gastou o equivalente a 40 quilos de ouro. Em onze anos, a frota negreira de Joaquim Pereira Marinho, que tem estátua em Salvador, transportou 11 mil negros.

Esse volume da trilogia de Laurentino pode ser lido por quem não passou pelos dois outros. Nele está a vida do Brasil do século XIX, com seus barões e senzalas. Entre a independência e 1850, quando a frota inglesa impôs ao Império o fim do tráfico, o país atolou. A lei diz que os negros chegados ao Brasil depois de 1831 eram livres. Os que foram resgatados viram-se privatizados por meio de um sistema de concessões. A neta de José Bonifácio de Andrada, o Patriarca da Independência, ganhou treze negros. O Barão de Mauá, patrono da indústria nacional, levou os seus. Os dois maiores políticos do Império, o Marquês de Paraná e o Duque de Caxias contrataram, cada um, duas dezenas. (Os dois jornalistas mais conhecidos também ganharam negros.) Para se livrar da escravidão, os Estados Unidos tiveram uma guerra civil que subjugou o Sul escravocrata. Darcy Ribeiro dizia que em Pindorama o Sul ganhou. Fica a dúvida, pois no Brasil não existia um Norte industrializando-se.

Laurentino começa seu livro mostrando as festas da Abolição e termina-o citando trechos de uma carta de João Francisco de Paula Souza, cafeicultor paulista, em março de 1888:

“Não hesitem, libertem em massa e contratem. (...) Trabalhadores não faltam. Temos os próprios escravos, que não derretem nem desaparecem (com a Abolição), e que precisam de viver e de se alimentar, e, portanto, de trabalhar, coisa que eles compreendem em breve prazo.

(...)

Desde primeiro de janeiro não possuo um só escravo! Libertei todos, e liguei-os à casa por um contrato social igual ao que tinha com os colonos estrangeiros (...). Bem vês que o meu escravismo é tolerante e suportável.

Estatística

O Núcleo de Inteligência e Pesquisas do Procon-SP informa: o preço da cesta básica de alimentos chegou a R$ 1.226.12.

Com esse valor, a cesta básica superou em R$ 14,12 o valor do salário mínimo, de R$ 1.212.

Pergunte ao indígena

Todos os organismos federais que cuidam da manutenção da ordem na Amazônia dizem que investigarão as possíveis conexões de outros criminosos com os assassinos de Bruno Araújo e Dom Phillips.

Se estiverem falando sério, perguntarão aos indígenas da região.

Foram eles que desvendaram o crime.

Noutra linha, poderiam perguntar ao prefeito de Atalaia do Norte, Denis Paiva, qual foi seu raciocínio quando mobilizou dois procuradores do município para defender o pescador Amarildo. Dias depois, eles abandonaram o caso.

Se o doutor Denis procede assim rotineiramente, tudo bem, inclusive quando os crimes envolvem indígenas, tudo bem.

Centrão x STF

A tentativa de transformar o Congresso em poder revisor de decisões do Supremo Tribunal Federal está fadada ao fracasso.

Isso não elimina outro receio de inúmeros magistrados. Reeleito, Jair Bolsonaro tentará aumentar o número de cadeiras do tribunal.

Madame Natasha

Madame Natasha concedeu mais uma de suas bolsas de estudo ao doutor Paulo Rebello, presidente da Agência Nacional de Saúde Suplementar, pela seguinte autoexaltação ao defender o reajuste de 15% das operadoras de planos de medicina privada:

“Nosso trabalho é defender o beneficiário.”

Natasha só usa o SUS e se orgulha de ser sua beneficiária. Rebello poderia ter dito que seu trabalho é defender o freguês ou o cliente, mas ninguém que paga por um serviço pode ser chamado de beneficiário.

A menos que Rebello se julgue beneficiário dos restaurantes onde vai comer.

Juros americanos

Com a inflação americana arriscando bater nos dois dígitos, o FED subiu a taxa de juros para uma faixa de até 1,75% ao ano.

Por pior que seja a notícia, ela não assusta quem entende de dinheiro. O que assusta é a possibilidade de o governo brasileiro acreditar que seu jogo de otimismo possa ser eterno.

Bolsonaro conseguiu

Jair Bolsonaro não conseguirá se livrar do impacto da carestia sobre sua candidatura, mas conseguiu transferir para a Petrobras a responsabilidade pelo aumento dos combustíveis.

Tereza Cristina na vice

Se a ex-ministra da Agricultura tem motivos para não disputar a Vice-Presidência da República, o tiroteio contra sua escolha é hoje um importante fator para escapar da indicação.

Ela conseguiu resistir ao fogo amigo enquanto esteve no governo.

 

Um comentário:

ADEMAR AMANCIO disse...

Escravo doméstico era ostentado como artigo de luxo,horror dos horrores!