terça-feira, 13 de setembro de 2022

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

Editoriais / Opiniões

Rosa Weber assume STF em momento crítico

O Globo

Nova presidente da Corte tem de fugir de polêmicas vazias sem se furtar à missão de proteger a Constituição

Foi prudente a decisão de Rosa Weber, empossada ontem como nova presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), de evitar polêmicas levando a julgamento casos rumorosos nos próximos meses. A meta é impedir que o STF seja tragado para o centro das atenções num período eleitoral marcado pela polarização extremada e por repetidos ataques do presidente Jair Bolsonaro e de seus aliados. Por uma grata coincidência, coube à ministra mais discreta da Corte o papel de chefiar o STF neste momento.

Rosa não gosta de dar entrevistas, nem de participar de palestras ou debates. Tem sido seu comportamento desde que assumiu o posto, em 2011. A cerimônia de posse, com a presença dos presidentes do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), e da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), foi mais comedida que de costume, sem os tradicionais coquetel e jantar oferecidos a representantes da magistratura.

O histórico da nova presidente traz um recado claro para aqueles que cometerem o erro de interpretar recato como fraqueza. Assim como outros integrantes da mais alta Corte, Rosa tem sido ferrenha defensora do Estado Democrático de Direito. Diante dos desafios, ela tem sido contundente em seus posicionamentos.

É conhecida por votos técnicos e pela fidelidade ao espírito colegiado mesmo quando entra em conflito com sua posição individual. Como ministra, respeitou em todas as suas liminares as decisões da Corte que autorizavam a prisão em segunda instância até o momento em que o plenário reexaminou a questão — e ela votou contra.

Rosa negou ontem pedido da Procuradoria-Geral da República (PGR) para arquivar três apurações contra Bolsonaro baseadas no relatório da CPI da Covid (uma delas investiga a acusação de prevaricação na compra da vacina indiana Covaxin). Na quinta-feira, ela dera continuidade a um pedido de investigação feito por parlamentares de oposição contra Bolsonaro pela disseminação de informações falsas sobre urnas eletrônicas durante reunião com embaixadores em julho. No ano passado, suspendeu trechos de decretos presidenciais que facilitavam a compra e o porte de armas e determinou maior transparência na execução das emendas do relator.

Seu mandato como presidente será interrompido prematuramente em outubro de 2023, quando se aposentará compulsoriamente. Embora curta, a gestão de Rosa ocorrerá em período extremamente sensível. O primeiro turno das eleições acontecerá em menos de três semanas. O prédio do Supremo, que já foi alvo de bolsonaristas, tem sido forçado a adotar esquema de segurança de nível máximo em determinas ocasiões. Várias medidas para reforçar a segurança foram tomadas nos dois anos em que a Corte foi chefiada pelo ministro Luiz Fux.

A gestão do agora ex-presidente foi marcada pela eficiência. O STF tem hoje o menor acervo total de processos em tramitação dos últimos 27 anos: 22.354, 21% menos que em 2020. Outro avanço foi a transição para uma Corte 100% digital. Durante os piores momentos da pandemia, o STF funcionou remotamente. Acima de tudo, Fux soube fazer uma defesa adequada do Supremo, dos seus ministros e da Constituição diante dos desafios impostos por um chefe do Executivo que inflamou seus seguidores contra a Corte.

Proliferação de armas em poder de amadores torna Brasil mais inseguro

O Globo

Facilitar acesso aos CACs equivale a facilitar acesso aos criminosos, revela reportagem do GLOBO

Dentre todas as medidas do governo Jair Bolsonaro para facilitar posse e porte de armas, uma das mais preocupantes é o incentivo à categoria dos colecionadores, atiradores e colecionadores, identificados pela sigla CAC. Os registros de CACs no Exército cresceram de 117 mil em 2018 para 674 mil em junho passado. Amadores adquiriram o direito de comprar até 60 armas (inclusive as de maior calibre e letalidade) e 180 mil cartuchos de munição por ano (antes o limite era de 16 armas e 40 mil cartuchos). Pela estimativa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), o arsenal em poder dos CACs cresceu de 350 mil armas para mais de 1 milhão.

Ao contrário do que sustentam os ideólogos do bolsonarismo, essa multiplicação de armas pelo país tem contribuído para gerar mais insegurança nas ruas. O principal motivo é que armas compradas pelos CACs legalmente têm ido parar em mãos de criminosos com frequência assustadora. Vários exemplos citados em reportagem do GLOBO ilustram como a facilitação das armas significa, na prática, facilitação do crime, em particular da modalidade apelidada “novo cangaço”, que aterroriza cidades do interior.

Os casos se repetem por todo o país. Uma onda de assaltos em Araçatuba, interior de São Paulo, contou com “apoio” de um CAC que mantinha armas e até munição de uso proibido. Um fuzil cotado a R$ 50 mil no mercado ilegal foi comprado legalmente por R$ 14 mil por um CAC, que o repassou aos responsáveis pelo roubo a uma transportadora gaúcha. Em Pernambuco, um colecionador foi preso negociando uma bazuca com criminosos. Em Natal, um atirador amador foi detido quando vendia um fuzil a um dos maiores traficantes do Nordeste.

Outra brecha aberta pelas regras frouxas adotadas para CACs tem permitido o drible numa das conquistas do Estatuto do Desarmamento: a proibição ao porte de armas. Outra reportagem do GLOBO revela as artimanhas usadas para justificar o porte brandindo o registro que dá direito a transporte até estandes de treinamento (outra novidade deste governo). Foram criados clubes de tiro de alcance nacional e outros com funcionamento 24 horas, de modo a justificar a circulação de armas e munição em qualquer momento e local. Surgiram até aplicativos que permitem agendar aulas em tempo real para driblar a fiscalização imprevista.

As consequências da permissividade têm sido trágicas, como revela o caso de um empresário de São Paulo que atirou num criminoso que já havia sido detido e rendido pela polícia. Casos assim demonstram como a proliferação das armas em poder de amadores, tão incentivada por Bolsonaro, significa um risco maior para a população que deseja apenas viver em paz.

Na semana passada, uma liminar do Supremo suspendeu três decretos que facilitam acesso a armas e munições, cujo julgamento está paralisado por um pedido de vista do ministro Nunes Marques que dura mais de um ano. Passou da hora de ele devolvê-los para que o plenário da Corte enfim se pronuncie sobre a legalidade das medidas.

Balas de festim

Folha de S. Paulo

Plano dos militares para urnas soa mais modesto do que delírios de Bolsonaro

Após meses de arreganhos, as Forças Armadas parecem ter assentado um plano para atuar na fiscalização das eleições —e ele é muito mais modesto do que a fanfarronice de Jair Bolsonaro (PL) sugere.

A proposta dos militares é fotografar os boletins impressos pelas urnas de algumas seções eleitorais no dia da votação e compará-los com os documentos que serão disponibilizados pelo Tribunal Superior Eleitoral no mesmo dia.

Na avaliação das Forças Armadas, uma amostra diminuta de 385 urnas, correspondente a menos de 1% das que serão usadas no primeiro turno, bastará para aferir a confiabilidade do sistema oficial de totalização dos votos.

Além disso, duas sugestões para aprimorar os testes de integridade das máquinas, habitualmente realizados no dia da eleição, foram bem recebidas pela Justiça e poderão ser colocadas em prática em caráter experimental.

Os boletins impressos pelas urnas mostram os resultados de cada seção, reproduzindo as mesmas informações transmitidas ao TSE, e são afixados há várias eleições nos próprios locais de votação, após seu encerramento.

Neste ano, pela primeira vez, o TSE decidiu divulgá-los imediatamente na internet também, facilitando o trabalho das entidades habilitadas a fiscalizar o processo, entre as quais as Forças Armadas.

O plano dos militares está longe de representar uma contagem paralela dos votos ou qualquer coisa parecida. Ele servirá apenas para verificar a solidez dos dados.

A transparência dos sistemas é tão grande que permite inclusive que se fiscalizem os fiscais. Qualquer pessoa que tema uma ação mal-intencionada dos militares poderá conferir os boletins na internet e replicar o que eles fizerem.

As Forças Armadas pretendem escolher as 385 seções eleitorais em cidades onde deverão estar presentes para auxiliar na segurança do pleito —o que obviamente não autorizará qualquer tentativa de extrapolação dos resultados da amostra para o cômputo nacional.

Só falta combinar com Bolsonaro, que não se cansa de alimentar suspeitas infundadas sobre as urnas. Mesmo quando finge não fazê-lo, ele sempre deixa a porta aberta para contestar os resultados se lhe forem desfavoráveis.

Em entrevista na semana passada, por exemplo, disse que é impossível garantir que as urnas estarão imunes a fraudes, mesmo se as sugestões das Forças Armadas forem acolhidas pela Justiça Eleitoral.

Como é óbvio desde o início da ofensiva, o único objetivo é criar confusão, na esperança de encontrar no tumulto uma saída desesperada em caso de derrota. Se os militares quiserem participar da pantomima, será por sua conta e risco.

Surpresa de Kiev

Folha de S. Paulo

Ataque ucraniano altera dinâmica da guerra, mas é cedo para falar em uma virada

Em fins de julho, ataques coordenados com artilharia de precisão americana por parte das Forças Armadas da Ucrânia anunciaram, pode-se dizer, o início da terceira grande fase da guerra iniciada pela Rússia de Vladimir Putin.

Kiev buscaria reconquistar parte da província sulista de Kherson, vital para os ocupantes russos por integrar o corredor terrestre que liga o leste russófono do país, que já estava em mãos pró-Kremlin desde 2014 com a Crimeia.

Durante cinco semanas, a ofensiva não decolou, mas atraiu grandes reforços russos. Quando foi enfim lançada, enfrentou muitas dificuldades para romper as defesas estabelecidas por Moscou na área.

O que nem russos nem analistas militares esperavam ocorreu na primeira semana de setembro: a abertura de uma segunda contraofensiva, desta vez na região nordeste da Ucrânia, na província de Kharkiv —que, com exceção da capital e da porção oeste, encontrava-se ocupada desde abril.

Ali, o exército invasor estava menos guarnecido devido aos reforços enviados ao sul, e o resultado foi uma estrondosa vitória para Kiev —que retomou quase todo o território, no seu mais bem-sucedido ataque em seis meses de guerra.

Antes, na primeira etapa do conflito, a Rússia fracassou em dobrar o governo de Volodimir Zelenski com uma investida tão ambiciosa quanto mal planejada. Foi mais uma derrota tática para si própria do que um triunfo ucraniano.

Putin teve de deixar as áreas em torno de Kiev, norte e nordeste do país, porém manteve seus ganhos no sul e iniciou uma fase centrada no Donbass, o leste russófono. Ali vem colhendo bons resultados, mesmo que lentamente.

Agora, o novo capítulo do embate se dá sob o signo da surpresa de setembro de Kiev. Cabe, contudo, cautela: os russos fugiram para leste, deixando áreas sem resistência, e poderão se reagrupar.

Nesta segunda-feira (12), retomaram a rotina de bombardeio punitivo a civis, deixando a cidade de Kharkiv, a segunda mais populosa da Ucrânia, no escuro e sem água.

Não é certa a capacidade de Zelenski de defender áreas reconquistadas tão rapidamente a tempo de evitar um contra-ataque com eficiência, e ainda é cedo para dizer que as perdas russas indicam uma virada maior no tabuleiro militar.

Isso dito, a dinâmica de uma guerra que se desenha arrastada está sendo redefinida, e pela primeira vez por iniciativa de Kiev.

‘Voto útil’ para quem?

O Estado de S. Paulo

Lula defende que eleitores de outros candidatos votem nele para derrotar Bolsonaro no 1.º turno; esse voto é ‘útil’ para o petista, mas não é necessariamente bom para a sociedade

O candidato Lula da Silva não quer apenas ganhar a eleição em outubro; ele quer ser eleito no primeiro turno, o que seria uma façanha inédita para o PT após mais de 30 anos de disputas pela Presidência. Nos últimos dias, aumentou a pressão da campanha de Lula pelo chamado “voto útil”. A questão é: o “voto útil” no petista, já no primeiro turno, é útil para quem, afinal? Para Lula, obviamente, é. No entanto, para o conjunto da sociedade, esse desfecho não é necessariamente bom. 

O “voto útil” é aquele que o eleitor escolhe dar, no primeiro turno, não a seu candidato preferido, mas àquele que é visto como mais capaz de derrotar o candidato que esse eleitor repudia. Assim, o “voto útil” aceleraria a derrota do candidato indesejado, impedindo-o de chegar ao segundo turno. Considerando-se que o segundo turno é uma outra eleição, em que há apenas dois postulantes em condições praticamente iguais de disputa, é possível que muitos eleitores escolham evitar que o candidato que repudiam tenha essa chance de vencer.

Trata-se de um raciocínio válido, é claro – afinal, o eleitor é livre para estabelecer suas prioridades na hora de votar. O problema é que esse “voto útil” entra no balaio de votos do candidato vencedor como se fosse um aval às suas propostas de governo, e isso não é necessariamente verdadeiro. Aliás, é provavelmente falso, uma vez que o “voto útil” em geral é dado não pelo que o candidato propõe, mas exclusivamente por sua capacidade de derrotar o oponente que o eleitor não quer ver na Presidência. Vota-se, portanto, no “mal menor” – que, malgrado seja “menor”, não deixa de ser “mal”.

Ademais, e isso talvez seja o mais importante, o eleitor que vota no primeiro turno como se estivesse no segundo, ou seja, antecipando uma escolha que não precisa ser feita neste momento, desperdiça o voto que poderia servir para robustecer a oposição. Isso é crucial numa democracia: o candidato derrotado é tão relevante quanto o que vence, pois é do derrotado que se espera o exercício da oposição. Sem oposição forte, o governo se sente à vontade para governar somente para aqueles que o elegeram, e não para o conjunto da sociedade. Quanto mais votos essa oposição tiver, mais a sociedade ganha.

Por fim, é uma grosseira falácia atribuir a Lula da Silva a missão de “salvar a democracia”, isto é, impedir a reeleição do presidente Jair Bolsonaro, que representaria uma suposta ameaça às liberdades democráticas e à estabilidade do País. Ora, se a democracia depende de Lula da Silva para ser “salva”, estamos mal – afinal, como pode alguém se dizer salvador da democracia e ao mesmo tempo manifestar admiração por ditadores latino-americanos, tratando-os carinhosamente como “companheiros”?

O objetivo de Lula com essa campanha pelo voto útil é “liquidar a fatura”, como dizem seus apoiadores, já no próximo dia 2. Recentes pesquisas de intenção de voto têm mostrado que a distância que separa o petista de Bolsonaro não é mais tão confortável como há alguns meses. Mas uma coisa é a tática eleitoral de Lula; outra, muito diferente, é o interesse da sociedade.

Recentemente, Lula afirmou no Twitter que ele “não tem por que ter vergonha de ganhar no primeiro turno”, afinal, “se quem tem 5% (de intenções de voto) sonha em ter 40%, por que quem tem mais de 40% não pode sonhar em ter mais um pouquinho e ganhar no primeiro turno?”.

Lula pode sonhar com o que quiser. A bem da verdade, qualquer candidato a cargo majoritário deve almejar ser eleito no primeiro turno. É um truísmo. O ponto é que a Constituição não prevê eleições majoritárias em dois turnos por acaso. Trata-se de um sistema que visa ao amadurecimento democrático, evitando escolhas plebiscitárias a priori.

Neste ano, não há apenas dois, há dez candidatos à Presidência. E nenhum deles tem um voto sequer antes da abertura das urnas. Pesquisas de intenção de voto aferem nada além disso – a intenção dos eleitores num dado momento. Fossem atestados fiéis da vontade da maioria, nem precisaria haver eleições, bastaria encomendar pesquisas. É tempo de reflexão, e não de pressa.

O inaceitável desperdício de alimentos

O Estado de S. Paulo

Enquanto milhões de pessoas passam fome no Brasil e no mundo, 1/3 dos alimentos produzidos no planeta se perde ou vai parar na lata do lixo, estima consultoria internacional

Em tempos de crescente fome e insegurança alimentar no Brasil e no mundo, é perturbadora a estimativa de que um terço dos alimentos anualmente produzidos no planeta se perde ou é desperdiçado. O dado foi divulgado pelo Boston Consulting Group, consultoria internacional que prevê o agravamento do problema nos próximos anos. A projeção é que o mundo chegará a 2030 deixando de aproveitar 2,1 bilhões de toneladas de alimentos por ano, o que significa dizer que tamanha quantidade de carnes e vegetais de todo tipo vai simplesmente apodrecer ou ser jogada fora, em vez de alimentar a população global.

Impossível não pensar em outra estimativa, tão ou mais assustadora, recentemente divulgada pela Organização das Nações Unidas (ONU): até 828 milhões de pessoas, quase 10% da população mundial, enfrentaram privação alimentar no ano passado, ou seja, passaram fome. A situação agravou-se em decorrência da pandemia de covid-19 e, atualmente, sofre também os efeitos da guerra na Ucrânia. Vale lembrar que outros 2,3 bilhões de pessoas (29,3% da população global), conforme a ONU, viviam a chamada insegurança alimentar, isto é, tinham que lidar com incertezas a respeito de sua capacidade de obter comida, o que é sinônimo de redução da quantidade e da qualidade dos alimentos ingeridos.

É nesse cenário que as projeções do Boston Consulting Group se tornam ainda mais aterradoras. Para ter ideia do que representam 2,1 bilhões de toneladas de alimentos − a quantidade que deverá ser perdida em 2030, no mundo −, basta dizer que toda a produção de grãos no Brasil, na atual safra, deve chegar a 271 milhões de toneladas ou 13% disso. A consultoria estima também que o prejuízo financeiro atingirá US$ 1,5 trilhão em 2030. De novo, a título de comparação, vale registrar que tal cifra corresponde a quase todo o Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil.

Não resta dúvida de que a diminuição das perdas e do desperdício de alimentos envolve uma questão humanitária. É assombroso, para dizer o mínimo, pensar que milhões de pessoas estão passando fome neste exato instante, enquanto toneladas de comida se perdem pelo caminho − ou vão parar no lixo. Há também uma série de questões econômicas, logísticas, ambientais e de hábitos de consumo sobre as quais o Boston Consulting Group se debruçou, e para as quais há soluções ou recomendações que vale a pena conhecer.

A consultoria faz uma clara distinção entre perdas de alimentos e desperdício, e estima que aproximadamente metade da comida descartada é de frutas e legumes. A cadeia produtiva da maçã é citada como exemplo: para cada 10 milhões de maçãs, segundo a consultoria, 13% se perdem no próprio processo de produção; 6%, no armazenamento, manuseio e transporte; 1%, no processamento e embalagem; 6%, na distribuição e no varejo; e 8% delas são desperdiçadas pelos consumidores finais, totalizando 34% de perdas. Em resumo, de cada 10 milhões de maçãs, 3,4 milhões ficam pelo caminho ou são jogadas no lixo. 

O estudo destaca que é possível reduzir esses índices, a ponto de cortar o prejuízo financeiro quase pela metade, o que permitiria economizar US$ 700 bilhões ao ano, como mostrou recente reportagem do Valor. A mobilização nesse sentido precisa envolver governos, produtores rurais, empresas, consumidores e a sociedade em geral. Há muito a ser feito, seja do ponto de vista macro ou micro. Na Amazônia, por exemplo, o relatório estima que 3% dos peixes acabam sendo descartados por causa de deficiências no transporte. Colheitas prematuras também geram perdas, assim como o estímulo para que clientes em bufês se sirvam de porções maiores do que realmente vão comer. 

Uma das recomendações é justamente aumentar a conscientização dos consumidores, assim como criar mecanismos regulatórios ou fiscais para desencorajar perdas e desperdícios. Enfim, a lista é longa − e é preciso agir com rapidez. Como dizia o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, quem tem fome tem pressa. É inaceitável que o mundo abra mão dos alimentos que produz em meio a tanta gente que não tem o que comer.

A contraofensiva ucraniana

O Estado de S. Paulo

Se é possível vislumbrar o fim da guerra, ele ainda está distante, e a humilhação de Putin desencadeia novos riscos

Nos últimos dias, uma contraofensiva há muito esperada, mas ainda assim surpreendente, sinaliza que a Ucrânia pode estar mudando a maré da guerra.

Por semanas os ucranianos têm combatido intensamente no sul, obrigando os russos a enviarem reforços, enquanto no leste se mantinha uma guerra de atrito. Mas, em poucos dias, um ataque surpresa dos ucranianos no leste conseguiu recuperar oficialmente 3 mil km² – algumas estimativas sugerem 8 mil km², mais do que a Rússia conquistou em meses.

É o momento mais importante do conflito desde que os russos foram obrigados a uma retirada humilhante no norte, em abril, após suas incursões nos arredores de Kiev. Desde então, a Rússia asseverava que seu objetivo era dominar os territórios de Luhansk e Donetsk, no leste. Mas as recentes conquistas ucranianas praticamente inviabilizaram essa meta.

A pressão ucraniana no sul, combinada com a contraofensiva no leste, impõe à Rússia um dilema. A prudência exigiria enviar tropas a Luhansk para assegurar uma linha defensiva. Mas isso implicaria vulnerar posições em Kherson e Donetsk. A campanha ucraniana parece projetada para pressionar o presidente russo, Vladimir Putin, com tal dilema, e tirar proveito disso.

A retirada caótica dos russos sugere um moral baixo, esgotamento de recursos e confusão na liderança militar. Ao mesmo tempo, o sucesso ucraniano mostra que a cooperação com os serviços de inteligência ocidentais e o emprego de armas como os mísseis de longa distância americanos estão produzindo os efeitos desejados.

A contraofensiva permite pela primeira vez vislumbrar o fim da guerra. Mas esse desfecho ainda está distante. Os russos têm condições de reagrupar as forças em uma linha de defesa no nordeste e conduzir contra-ataques. Além disso, a pressão sobre Putin implica riscos para os quais é preciso estar alerta.

Já estão circulando críticas severas de ultranacionalistas russos que desejavam uma ação mais agressiva. Como sempre na história da Rússia, Putin conta com o inverno. Ele pode cortar ainda mais os suprimentos de energia para a Europa, na expectativa de provocar tumultos sociais e pressionar aqueles que apoiam a Ucrânia. Além disso, desde o princípio ele advertiu que poderia empregar armas químicas e nucleares. Isso poderia infectar o território russo e mesmo territórios da Otan.

Os líderes ocidentais, especialmente europeus, precisam deixar claro que quaisquer manobras nesse sentido transformarão Putin incondicionalmente em um pária. Além de mais armas para os ucranianos, eles precisam acelerar seus planos de contingência para abastecer reservas de energia, distribuir ajuda à população atemorizada com a escalada do custo de vida e investir em comunicação pública para esclarecer a essa população que os sacrifícios valem a pena. Uma vitória de Putin convidaria a novas agressões na Europa.

Os riscos são altos. Mas, pelo momento, após um ano sombrio, as imagens da debandada dos soldados russos e dos abraços dos ucranianos libertados devem ser tomadas por aquilo que são: ótimas notícias.

Sem desculpas para o péssimo resultado do Brasil no IDH

Valor Econômico

As sérias falhas do governo Bolsonaro no enfrentamento da pandemia são a principal explicação para a queda do IDH

Quando foi divulgado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do Brasil referente a 2019, a Casa Civil de Jair Bolsonaro, então chefiada por Onyx Lorenzoni, apressou-se em atribuir aos “governos petistas” do passado o número, que é calculado a partir dos indicadores de saúde, escolaridade e renda da população.

Quatro anos depois é impossível usar a mesma desculpa para explicar o péssimo resultado do IDH que, em 2021, caiu pelo segundo ano consecutivo e ficou em 0,754, o menor patamar desde 2015. Com esse desempenho, o Brasil ficou em 87º lugar entre 191 países do mundo todo acompanhados pelo Pnud, e em 16º na América Latina, bloco liderado pelo Chile, atrás da Argentina, Cuba, México e Peru.

É verdade que o IDH caiu nos últimos dois anos no mundo todo, mas menos do que no Brasil. A pandemia do novo coronavírus teve efeito fulminante nos indicadores globais de saúde, sendo a expectativa de vida um dos pilares do IDH. A expectativa de vida do brasileiro ao nascer caiu de 75,3 anos no primeiro ano do governo Bolsonaro para 72,8 anos em 2021, ou seja, diminuiu em 2,5 anos e voltou ao menor nível em 12 anos. Na média global, a expectativa de vida foi reduzida menos, em 1,6 ano.

As falhas do governo Bolsonaro no enfrentamento da pandemia são a principal explicação para a queda do IDH brasileiro. O governo resistiu à compra de vacinas e só agiu após pressão da sociedade e dos governadores. O próprio presidente pôs em dúvida a seriedade da pandemia ao compará-la a uma “gripezinha”, e a eficiência das vacinas, embora agora alardeie na campanha eleitoral quantos imunizantes adquiriu. Criticou e ainda o faz em campanha as medidas de isolamento social. O governo federal foi omisso e negligente, deixando para Estados e municípios a organização da vacinação e do tratamento dos infectados, falhando nos casos em que precisou intervir, como na crise em Manaus.

O país contabiliza quase 700 mil mortos em consequência da covid-19, o segundo maior número oficial de mortos na pandemia, depois dos Estados Unidos que, ainda assim, ficou em 21º lugar no IDH de 2021, com o índice de 0,92. Com a rede hospitalar concentrada em atender os atingidos pela covid-19, outras doenças foram negligenciadas, contribuindo para elevar o número de mortos. Todo o calendário vacinal está agora em risco.

Outro indicador que compõe o cálculo do IDH é a renda da população que, em termos nominais, ficou estável, segundo o Pnud, embora 8,3% abaixo do pico da série histórica, atingido em 2013. A evolução do PIB per capita ilustra melhor o problema. Em 2021, o PIB teve crescimento de 4,6%, compensando a queda de 3,9% do primeiro ano da pandemia. Mas o PIB per capita aumentou 3,9% no ano passado, percentual insuficiente para anular a perda de 4,6% de 2020.

O Pnud também enfoca a questão do ponto de vista da distribuição de renda. Nesse caso, o IDH brasileiro despenca 20 posições, caindo nada menos do que 23,6%, de 0,754 para 0,576. Na questão de gênero, os números são piores. A expectativa de vida das mulheres é 6,4 anos menor do que dos homens; e a renda média anual cai pela metade, sendo US$ 7 mil menor.

O terceiro pilar do IDH é a educação, área entregue a ministros igualmente omissos e voltados para questões desimportantes como o homeschooling. O Pnud trabalha com a expectativa de que o brasileiro terá 8,1 anos de estudo, mas as informações estão defasadas.

Indicação de como o governo põe a educação em plano secundário é o tratamento da área dentro do Orçamento do próximo ano. A ONG Todos pela Educação alertou que o projeto orçamentário retira quase R$ 1 bilhão dos recursos destinados ao Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), que cobre despesas de diversas unidades orçamentárias do Ministério da Educação (MEC), incluindo a administração direta da pasta e instituições de ensino federais, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), o programa de pós-graduação Capes e o FNDE. O Ministério da Educação foi o mais contemplado com despesas discricionárias, que podem ser cortadas e manejadas. A pasta tem previstos aproximadamente R$ 20,6 bilhões em despesas discricionárias do total de R$ 98,9 bilhões previstos pelo Executivo para o ano que vem. Isso mostra a escassa disposição do governo de melhorar os indicadores de desenvolvimento humano do país.

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