O Estado de S. Paulo
Emergência clara das dimensões políticas e ideológicas do alinhamento com Rússia e China erodiu dramaticamente o capital político de Lula no Ocidente coletivo
Na avaliação da política externa, a
tradição dominante entre analistas brasileiros é dar pouca relevância à questão
dos regime políticos. Seguem uma abordagem neorrealista, conforme a qual os
Estados têm interesses permanentes derivados de sua geografia, história e
identidade cultural. Sem negar a relevância dessas dimensões, nosso argumento
vai na direção oposta: os interesses dos Estados variam segundo os regimes
políticos e os governos, e segundo as transformações da economia política
mundial.
A invasão russa da Ucrânia consolidou um forte componente de guerra fria entre as democracias do “Ocidente coletivo” (que inclui Japão, Coreia do Sul, Taiwan, Austrália e Nova Zelândia) e o bloco autocrático (com China, Rússia, Irã e Coreia do Norte). Esse confronto delineia-se desde 2015, mas o traço que define a guerra fria é mais recente: cada bloco vê o outro como ameaça existencial. Está em pleno curso o desacoplamento entre ambos no referente à alta tecnologia e, particularmente, à tecnologia de uso dual (civil e militar).
Isso aponta para um sistema internacional
bipolar, e não multipolar, embora com características inéditas em relação à
guerra fria no século 20. Primeira: alta interdependência econômica entre os
dois blocos, embora menor entre Ocidente e Rússia desde a invasão. Segunda: à
diferença da União Soviética, a China é uma superpotência econômica. Terceiro:
há desafios globais, de ordem existencial, que só serão equacionados por meio
da cooperação e, portanto, de regras e instituições acordadas: mudança
climática, pandemias, regulação da inteligência artificial.
Os países do “Sul Global” estão em posição
intermediária. Mas qual o valor analítico dessa noção? Inclui países de rendas
média alta, média baixa e baixa; e regimes políticos numa escala que vai do
democrático liberal, como Chile, Uruguai e Costa Rica, ao autocrático fechado
da Arábia Saudita, dos Emirados, do Egito e do Vietnã (seguimos, aqui, a
classificação do V-Dem 2023).
Apesar de ter perdido o status de
democracia com traços liberais a partir de 2017, o Brasil é uma democracia
eleitoral. Tem fortes convergências com o bloco do Ocidente coletivo: a
proteção da democracia e de direitos humanos; o suprimento de equipamentos
militares fabricados em países da Otan; o treino de altos oficiais se faz
nesses redutos e as doutrinas de defesa são as ocidentais. Ao mesmo tempo, o
desejável fortalecimento da interdependência comercial com China revelou-se,
até aqui, compatível com a que estabelecemos com países do Ocidente – nas áreas
financeira e de investimentos diretos.
Na viagem à China e na subsequente visita
de Sergei Lavrov ao Brasil, no entanto, foram as dimensões políticas e
ideológicas do alinhamento com a Rússia e com a China que emergiram com
clareza. Isso erodiu dramaticamente o capital político de Lula no Ocidente
coletivo.
Está claro que a estratégia de Lula/Celso
Amorim apoiase em supostos cujo teor exige reflexão crítica. O principal é a
convicção de que estamos num sistema multipolar, quando na verdade a invasão da
Ucrânia representa um ponto de virada macrohistórico, porque consolidou
alinhamentos em torno de um confronto típico de sistema bipolar – embora mais
complexo e desafiador.
Além disso, suas prioridades têm por foco o
Brics, o que é questionável. Não só por incluir os dois líderes do bloco
autocrático, mas principalmente pela suposição implícita de que esse clube
constitui um território neutro. Como assim, se ele inclui a Índia? Um poder
nuclear cujo conflito (existencial) com a China o fez integrar o grupo Quad –
ao lado de Japão, Austrália e Estados Unidos?
A história política de Lula e do PT mostra
uma visão política que inclui muitas reticências em relação às democracias
liberais, um antiamericanismo light e admiração pela esquerda autoritária
latinoamericana. A campanha eleitoral, porém, foi pautada por acenos que
apontavam para uma mudança de perspectiva – que, por sua vez, foram legitimados
internacionalmente pelo empenho das democracias ocidentais em garantir a
integridade do sistema eleitoral e dissuadir setores militares da tentação
golpista.
Quatro meses depois da posse, está claro que a ambição de Lula é projetar-se como uma liderança mundial, com seus efeitos multiplicadores no doméstico. Neste caso, definitivamente, o caminho deve ser outro, pois o Brasil não tem excedente de poder para mediar numa região que conhece pouco e com a qual tem vínculos limitados. As áreas nas quais tem condições de protagonismo mundial são as políticas climática e de transição energética. Justamente aquelas que são decisivas para equacionar alguns dos desafios globais de ordem existencial mencionados. Para tanto, há que reduzir drasticamente o desmatamento, evitar as tentações do nacionalismo petroleiro e investir nas oportunidades abertas para exercer protagonismo ambiental – a presidência do G20 e a COP 30.
*Lourdes Sola e Eduardo Viola, coordenadores do grupo de pesquisa do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP ‘economia política internacional, variedades de democracia e descarbonização’, são, respectivamente, professora sênior do IEA/USP e professor v
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