Valor Econômico
Campos foi um desenvolvimentista sem saber,
a despeito de suas preferências intelectuais e ideológicas
No dia do aniversário de 23 anos de nosso
valoroso Valor presto uma homenagem ao jornal: dou início à minha
peregrinação nos labirintos da economia guiado por um conto de Sergio Porto, o
Stanislaw Ponte Preta, uma figura excelsa da literatura brasileira. Esse conto
está publicado no livro Febeapá - O Festival de Besteiras que Assola o País. O
título não deixa dúvidas a respeito do “espírito da época”: “ O General Taí”.
Com seu estilo irreverente, Ponte Preta nos
apresenta o personagem Genésio e suas peripécias na posteridade do golpe de
1964. “Genésio adaptou-se à nova ordem com impressionante facilidade e chegou a
ser um dos mais positivos dedos-duros no ministério. Com isso, Genésio
conseguiu certo prestígio junto à administração. Quando veio a tal política
financeira do dr. Campos (o avô do Neto), foi dos primeiros a aplaudir a medida.
Num desses coquetéis de gente bem, onde foi
representando o diretor do departamento, aproveitou um hiato na conversa, para
falar bem alto, a fim de ser ouvido pelo maior número possível de testemunhas:
- A política de contenção do dr. Roberto (o avô do Neto) é simplesmente gloriosa! Breve até as classes menos favorecidas estarão aplaudindo a medida. Todos ouviram e, como tava todo mundo com o traseiro encostado na cerca, naqueles dias (e muitos estão até hoje), ninguém contestou.
O que eu sei é que o Genésio deu o grande
durante uns quatro ou cinco meses. Depois, como era um filho de jacaré com
cobra-d’água, caiu de novo no seu chatíssimo cotidiano e só ficou elogiando a
“redentora” por vício ou talvez por causa de uma leve esperança de se arrumar
ainda. Mas teso é teso, é ou não é? O tempo foi passando e o boi sumiu; o leite
é isso que se vê aí; o feijão anda tão caro que, noutro dia, num clube da Zona
Norte, promoveram um jogo de víspora marcando as pedras com caroço de feijão e
foi aquela vergonha alguém roubou os caroços todos para garantir o almoço do
dia seguinte. Genésio começou a desconfiar que tinha entrado numa fria.
Aquilo não era revolução pra quem vive de
ordenado. Em casa, a mulher dava broncas ciclópicas, porque o ordenado mensal
dele estava acabando mais depressa do que a semana. Houve um dia em que botou
sua bronca: - Você é que não sabe fazer economia - disse para a mulher. - Pode
deixar que eu vou fazer a feira. Ah, rapaziada, pra quê! Genésio foi à feira e
só via gente balançando a cabeça; todo mundo resmungando, dizendo coisas tais
como “assim não é possível”, “desse jeito é fogo”, “como está não pode ser”. Em
menos de cinco minutos do tempo regulamentar, ele também estava praguejando
mais que trocador de ônibus”.
A releitura do conto magnífico de Sérgio
Porto - o Stanislaw - trouxe-me à memória um episódio protagonizado pelo
ministro do Planejamento da ditadura, o insigne Roberto Campos, avô do Neto.
Em maio de 1964, o ritmo de crescimento dos
preços prometia uma inflação anual de 144%. O chefe da missão do FMI, Jorge del
Canto, clamava por um tratamento de choque para combater a inflação. Campos
respondeu:
“Entre a alternativa de um tratamento de
choque do processo inflacionário e a de uma contenção progressiva da taxa de
aumento dos preços, o governo opta pela segunda, porque: a) o êxito de um
tratamento de choque dependeria, basicamente, do congelamento geral dos
salários, indesejável do ponto de vista social; b) dependeria, primordialmente,
da imediata eliminação dos déficits públicos, virtualmente impossível de
alcançar-se sem considerável mutilação dos investimentos públicos; c) a
expansão demográfica e a insuficiente criação de empregos produtivos no biênio
1962-1963 tornam essa fórmula também socialmente indesejável...”.
Entre tantos talentos, Campos passou a vida
aperfeiçoando o de espicaçar tudo o que se assemelhasse à heterodoxia.
Ex-seminarista e conhecedor de grego, sabia da importância da palavra doxa.
Campos chegou ao delírio, lançando boutades
de grosso calibre contra todo tipo de socialismo, nacionalismo e outros
partidarismos que considerava irracionais. Dizia, por exemplo, que “no
socialismo, as intenções são melhores que os resultados e, no capitalismo, os
resultados são melhores que as intenções”. Achincalhou a “bazófia nacionaleira
que substitui a organização pela emoção e confunde a energia intrínseca da onda
com o farfalhar frívolo da escuma”.
Ministro do governo Castelo Branco, foi
protagonista, juntamente com Otávio Gouveia de Bulhões e Mário Henrique
Simonsen, das reformas econômicas e financeiras que prepararam o “Milagre
Brasileiro” do fim dos anos 1960 e começo dos 1970.
Como M. Jourdain, personagem de Molière no
Burgeois Gentilhomme, Campos foi um desenvolvimentista sem saber. Isso é o que
diz a sua biografia de homem de Estado, a despeito de suas preferências
intelectuais e ideológicas. Entre o fim da Segunda Guerra Mundial e o começo
dos anos 1950, participou de todos os empreendimentos e reconstruções
institucionais que alicerçaram o surto desenvolvimentista. Depois de concluir o
mestrado em Economia na Universidade George Washington, integrou a delegação
brasileira na Conferência de Bretton Woods, em 1944. Em 1950, participou da II
Conferência da Comissão Econômica para a América Latina (Cepal), foi
conselheiro da Comissão Mista Brasil-Estados Unidos e teve papel preponderante
na fundação do BNDE.
Ao assumir a direção do banco, ensejou a
criação do grupo misto Cepal-BNDE, um valhacouto de desenvolvimentistas que
espalharia (e continua espalhando) suas ideias malignas, por muito tempo,
Brasil afora.
Campos, tal como outros que o sucederam na
corrente conservadora, escrevia uma coisa e fazia outra. Sua vantagem é que a
maré do capitalismo estava na enchente, enquanto os pósteros pegaram a vazante.
Episódios recentes da vida brasileira estão
prestes a comprovar o julgamento do filósofo italiano Franco “Bifo” Berardi.
Ele assegura que a humanidade levou mil anos para converter o bárbaro em
burguês, mas poucas décadas para reconverter o burguês no bárbaro. Saudades dos
liberais de antanho, como Roberto Campos, o avô.
*Luiz Gonzaga Belluzzo é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp e professor emérito da Universidade Federal de Goiás.
Um comentário:
Eu também prefiro o avô,que se tivesse vivo não teria apoiado o Lula e muito menos Bolsonaro.
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