O Globo
Bolsonarismo deu as primeiras mostras de
que poderá ser eficaz em atrapalhar o novo governo
A polarização ideológica decisiva para a
vitória de Lula nas
eleições ensaia se tornar uma armadilha para as propostas de seu governo no
Congresso. À parte o desmonte do Estado e a ausência de projeto de sua
gestão, Jair
Bolsonaro foi o presidente que conduziu de forma criminosamente
negacionista a pandemia. A condição de único oponente viável a ele foi a
essência do triunfo lulista.
À diferença da disputa majoritária, o
Congresso saído das urnas tem inclinação à direita, com forte tom antipetista.
Jogado à oposição, o bolsonarismo tem como estratégia o acirramento da batalha
de valores, e ela deu as primeiras mostras de que poderá ser eficaz em
atrapalhar o novo governo.
O Planalto já acumula duas derrotas: o
adiamento do PL das Fake News e a suspensão dos decretos do saneamento. Com
maior ou menor frequência, virão outras, cada uma com enredo próprio, mas em
todas será incluída na lista de culpados a debilidade da “articulação política”
do governo. Ao menos no caso do projeto que visa a regulamentar as redes
sociais, a capacidade da oposição de levar a discussão para o ringue da “guerra
cultural” foi decisiva.
Derrotar o PT é um mote com aderência entre deputados, que pode gerar engajamento e derrubar mesmo projetos que não sejam propriamente de esquerda. Se, na eleição, partidos e eleitores de centro ou da direita democrática se sentiram moralmente compelidos a aderir a Lula, isso não ocorre mais. O aperto por que passa o colombiano Gustavo Petro — eleito numa frente ampla contra a extrema direita e logo isolado a uma raquítica base parlamentar — é um exemplo vizinho, guardadas as diferenças.
Não se trata de o Congresso ter virado um
espaço onde ideologias se sobrepõem a interesses próprios e a bancada
bolsonarista tem número limitado de parlamentares. Mas o debate de valores é
útil também como refúgio de discurso aos fisiologistas, seja de olho em
dividendos eleitorais pessoais ou em cobrar mais caro do governo.
Nesse contexto, a CPI dos Ataques
Golpistas, apesar de poder dar mais visibilidade ao golpismo bolsonarista,
torna-se perigosa também para o governo. O Planalto já parece preferir
postergar a comissão para depois da votação do arcabouço fiscal. Ao cabo, há um
Parlamento em maioria desejoso de que o governo Lula não dê certo, sentimento
que pode ganhar combustível no ritmo dos debates agressivos de uma CPI.
Para garantir a aprovação do arcabouço e de
outros projetos, Lula precisa do presidente da Câmara. A relação com Arthur Lira —
e aqui vai uma aposta — será melhor do que em média se especula. Como em toda
barganha, o jogo entre Planalto e chefe da Câmara é uma disputa sobre qual lado
necessita mais (ou menos) do outro, e não raro o calo do presidente da
República aperta primeiro.
Nessa contenda, contudo, foi boa para Lula
a decisão do Supremo que extinguiu o orçamento secreto. Os R$ 19 bilhões
previstos para emendas de relator foram divididos ao meio. A primeira parte
retornou às mãos do Executivo, e sobre essa verba produziu-se acordo segundo o
qual o governo atenderá a pleitos parlamentares, preferencialmente se alinhados
com programas tocados pelos ministérios. A outra metade turbinou ainda mais as
emendas individuais. Cada deputado dispõe sozinho neste ano de R$ 32 milhões
para ordenar o destino. É um minimandato executivo.
A hipertrofia das emendas torna os
parlamentares menos dependentes do governo. Mas também mais autônomos em
relação aos caciques partidários. Por um lado, Lira viu ser reduzida, em favor
do Executivo, sua ingerência na divisão dos recursos para emendas — Bolsonaro
lhe havia doado a gestão dessa parte do Orçamento. Por outro, cada deputado
ganhou mais independência. No PL das Fake News, o presidente da Câmara,
recentemente reeleito “por aclamação”, foi incapaz de domar a batalha
incendiária que forçou o adiamento. Não deixa de ser um alerta.
Os instrumentos de consolidação da base
aliada mudaram um tanto. A supervalorização das emendas deixou a cessão de
ministérios às cúpulas partidárias menos eficaz. Lula já percebeu. A abertura
da torneira para pagar emendas e distribuir cargos secundários será mais
generosa. É a injeção à mão do governo para servir de antídoto ao arrasto do
jogo parlamentar para a arena ideológica, em que será minoritário. São milhões
de reais de argumentos à mão para buscar a persuasão pragmática de um
Parlamento conceitualmente rival. O grau de incerteza é maior, todavia, quando
a realpolitik depende do pragmatismo alheio.
*Miguel Caballero é editor do impresso do GLOBO
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