O Globo
Guerras não são uma aberração. Apenas expõem
um lado da natureza humana mascarado por convenções de civilidade
O mundo está doente, sem muito onde esconder esta dor cortante que se chama guerra. Ela, a guerra dos tempos atuais, gosta de se exibir, de se mostrar na tela de qualquer celular. Ela adentra agora a terceira semana de uma escalada de matanças iniciada pelo grupo terrorista Hamas e respondida por Israel com punição coletiva máxima à vida em Gaza. Esse horror poderia ser pior? Sim, e muito — tanto para nossos compatriotas como para o resto do mundo. Basta imaginar o Brasil e os Estados Unidos ainda em mãos de Jair Bolsonaro e Donald Trump, com ambos encorajando os piores instintos do primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu. A remota eventualidade de o congressista de extrema direita Jim Jordan ocupar a presidência da Câmara dos Representantes americana, atualmente acéfala, já dá calafrios. Se eleito, Jordan se tornaria o terceiro na linha de sucessão, portanto logo atrás de Kamala Harris, em caso de afastamento do presidente Joe Biden por algum motivo. Integrantes do próprio Partido Republicano designam Jordan como “legislador terrorista”, golpista e partidário de uma política de terra arrasada.
Os historiadores Will e Ariel Durant,
coautores dos quase 20 volumes de “História da civilização”, calcularam que, em
toda a história da humanidade, vivemos apenas 27 anos sem que alguma guerra
estivesse ocorrendo em algum canto do planeta. Guerras não são, portanto, uma
aberração. Apenas expõem um lado da natureza humana mascarado por convenções de
civilidade que moldam a sociedade. Nunca é demais dar um Google ou fazer uma
imersão física na obra-prima de Goya, “El 3 de mayo en Madrid”, exposta no
Museu do Prado, de Madri. Na monumental tela de 2,6 x 3,4 metros pintada em
1814, a vítima anônima a ser fuzilada passou a representar todas as vítimas
inocentes de todas as guerras. É terrivelmente bela.
Ao longo da semana passada, assistiu-se a um
esforço concentrado do Conselho de Segurança da ONU, sob a presidência do
Brasil, para chegar a um acordo mínimo capaz de interromper a asfixia, por
fome, sede, deslocamento, enfermidades ou bombardeios ininterruptos, de
palestinos amontoados no que resta de vida em Gaza. Joe Biden deu o único voto
contra, chamando para si a primazia de dizer ao mundo (e a seu eleitorado
americano) quando e como arranjos humanitários teriam o aval dos Estados
Unidos. Entrementes mais vidas palestinas iam se apagando. Até a sexta-feira,
já havia mais de 1.600 crianças palestinas envoltas em mortalhas brancas,
choradas por quem ainda podia chorar.
Até hoje, nenhuma negociação envolvendo o
Estado de Israel e a Palestina conseguiu superar uma disparidade semântica
criada propositalmente quase cinco décadas atrás. No dia 22 de novembro de 1967,
com o Oriente Médio mal refeito da Guerra dos Seis Dias, o Conselho de
Segurança aprovou a Resolução 242, que exigia a retirada de Israel “de
territórios ocupados no conflito recente”. Na versão oficial em francês,
contudo, à preposição se acrescentou o artigo definido: retirada “dos
territórios ocupados”, de todos eles (Cisjordânia, Deserto do Sinai, Colinas de
Golã, Gaza). Enquanto a versão em inglês permitia flexibilidade para
negociações futuras, a francesa não dava espaço a interpretações. Ambas foram
referendadas à época, sobreviveram aos Acordos d Paz de Camp David (1978), Oslo
(1993) e continuam a reger essa diferença intransponível.
Não por acaso, “Vai pra Gaza” tornou-se
expressão coloquial israelense, usada por quem quer mandar o outro ao inferno.
Entrou para o léxico por força do statu quo, não muito diferente do “Vai pra
Cuba” dirigido por “brasileiros de bem” a comunistas imaginários. Não dói, mas
diz muito sobre o que está subjacente. Quando o atual ministro da Defesa
israelense, Yoav Gallant, classifica os palestinos de Gaza de “animais
desumanos”, recorre à mesma linguagem atiçada do terror.
A trágica história do povo judeu criou a
tragédia atual do povo palestino, resumiu o pensador francês Edgar Morin com
lucidez centenária (está com 102 anos). Morin talvez seja um dos últimos
adeptos do universalismo, a convicção de que determinados princípios e ideias
trazem embutidos um valor universal que transcende nações, fronteiras e laços
de sangue. Mas como tomar conta do mundo, perguntaria Clarice Lispector, se não
encontramos a quem prestar contas?
Um comentário:
Prestar contas à nossa consciência.
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