domingo, 22 de outubro de 2023

Ricardo Rangel* - O relatório da CPMI (e os militares)

Faltaram propostas concretas para remediar o golpismo

A CPMI chegou ao fim com relatório pedindo o indiciamento de Jair Bolsonaro e de mais sessenta supostos golpistas. Metade são militares, incluindo oito oficiais-generais, sendo seis de quatro estrelas, três ex-comandantes de Forças. É uma página triste e vergonhosa para o Brasil e para as Forças Armadas em particular.

Segundo consta, generais fora da lista não gostaram. Malu Gaspar, do Globo, listou algumas das palavras usadas: “uma fantasia que não para em pé, uma verdadeira pedalada jurídica”, “espetaculoso”, “patético”, “horrível”, “vingança”.

A reação é equivocada. Primeiro, porque indiciamento é só o que o nome diz: há indícios que justificam investigação — e há, mesmo. Segundo, porque, em vez de se preocuparem com o relatório, deveriam se preocupar com o fato de que há, indiscutivelmente, muitos militares envolvidos em crimes contra a República. A solidariedade a colegas de farda não deveria suplantar a solidariedade à pátria. Dito isso, não tem cabimento que G. Dias, o único general “do outro lado”, contra o qual há fortíssimos indícios, tenha ficado fora da lista.

Os militares brasileiros têm três tradições centenárias: golpismo, ascendência sobre o Poder Civil e inimputabilidade. O golpismo foi praticado intensa e ostensivamente nos últimos quatro anos. A ascendência sobre o Poder Civil se viu na própria CPMI, com o lobby do ministro da Defesa e do comandante do Exército para que generais fossem poupados do desgaste de depor. A inimputabilidade está em xeque pela primeira vez, e a resposta é a ameaça velada que volta e meia aparece: “olha lá, não mexe muito, não, porque senão a gente vira a mesa de novo”. (Se isso fosse possível, os golpistas teriam virado.)

“A inimputabilidade está em xeque pela primeira vez, e a resposta é a ameaça velada que volta e meia aparece”

O relatório não peca por ser duro, mas por ser suave: a CPMI aprofundou pouco o que já se sabia, não revelou fato novo e poupou até certo ponto os militares. Poderia ter descoberto muito mais e responsabilizado muito mais gente. E feito propostas concretas para remediar o golpismo. Três são óbvias e urgentes. É preciso reescrever o artigo 142 da Constituição. É preciso proibir que militares da ativa ocupem qualquer cargo governamental não ligado à Defesa.

E é preciso reformular os currículos das escolas militares: militares não nascem golpistas, é na escola que aprendem. Precisam parar de aprender que militares são superiores a civis; que existe comunismo e que ele é uma ameaça; que potências estrangeiras querem invadir a Amazônia; que democracia não é confiável, que ditadura é melhor.

De toda forma, o relatório tem o mérito o sistematizar as provas, listar os responsáveis e emprestar ao assunto o peso do Poder Legislativo. Também torna mais simples o trabalho da PF, do MPF e do Supremo. Não é pouca coisa.

A CPMI pode ter acabado, mas a novela está longe de acabar. Ainda falta um longo caminho até condenar os responsáveis (quando isso ocorrer, os generais terão novas e mais fortes cólicas). E o caminho até a pacificação do país será ainda mais longo e pedregoso. E ainda nem começamos.

*Publicado em VEJA de 20 de outubro de 2023, edição nº 2864

 

Um comentário:

Daniel disse...

Excelente! Jair Bolsonaro fez um serviço CONTRA os militares como nenhum outro cidadão brasileiro tinha feito! Ele foi um "mau militar" como já sabiam seus superiores quando ele estava no Exército, mas foi AINDA PIOR quando esteve na presidência e tentou usar as Forças Armadas como se fossem SUAS. Destruiu carreiras que eram militarmente sérias ou até brilhantes!