Folha de S. Paulo
O pentecostalismo é a incubadora de submissos
ao retrocesso, e Argentina parecer querer apostar nisso
Maus presságios quanto ao senso político do vizinho povo argentino suscitam
alguma reflexão sobre a natureza do conservadorismo brasileiro. A ficha começa
a cair onde deveria. Em declaração recente, o secretário de comunicação do PT
admite que "a surpresa foi constatar a reação do povo em relação à
política e à democracia". Quer dizer: as massas, em grande parte,
mostram-se impermeáveis a bens civilizatórios tidos como estáveis pelo
pensamento progressista.
Mas essa percepção é velha. Em meados do século passado, um jurista baiano, agastado com a subserviência popular à ditadura varguista, deplorava em tom elitista: "O povo é uma massa falida". Era o tempo em que também intelectuais europeus se diziam horrorizados com o estado mental do povo alemão. Em "A Linguagem do Terceiro Reich", Victor Klemperer descreve seu sobressalto ao entrar numa agência bancária: "Lá dentro, todos permaneciam de pé, tanto as pessoas defronte dos guichês quanto as detrás, em posição rígida, com o braço estendido, ouvindo uma voz que falava no rádio em tom declamatório". Hitler, claro.
Já em casa, comentando com a esposa o
deslumbramento de uma conhecida em particular, ele ouve: "essa von B. é
uma solteirona histérica, que vê no Führer o redentor. Hitler se apoia, ou se
apoiou, nessas solteironas até conseguir tomar o poder". Guardadas as
proporções, vêm à memória as cariocas às quais se atribuíam espasmos
psicopolíticos diante dos olhos úmidos de um notório prócer da direita. Mas
esse "credo" ambíguo ia e vai além disso.
De fato, há uma linguagem de fé, que escapa
às avaliações apenas racionalistas da esquerda. Nos corações devotos de todas
as épocas bombeia o sangue místico de "alguma ordem de cavaleiros"
(Klemperer) que, mesmo pagã, se articula com representações cristãs. Entre nós,
o pentecostalismo é a incubadora de submissos ao retrocesso. "O Cavaleiro
Inexistente", conto de Ítalo Calvino cujo protagonista é uma armadura vazia,
sem vontade própria, oferece retrato perfeito dessa submissão.
Tranquilize-se, entretanto, o espírito aberto
à transcendência. Aqui se trata realmente de veneração beata a pregadores de
uma "guerra santa", supostamente capaz de purgar a consciência do
medo da emergência social do outro, o diferente. A armadura oca adequa-se a uma
massa de viragos raivosas, jecas e brucutus sem tacape: o "Ranço".
Ainda que entre em recesso a idealização de um redentor, permanece o
ressentimento com lugar reservado para um "Volkskomiker" (palhaço do povo) branco. Essa era a designação dada a
Hitler e Göring no ocaso do nazismo. A
ironia objetiva de agora consiste em reconhecer o palhaço já no início do caos
fascista anunciado e, mesmo assim, votar nele. É o risco dos hermanos.
*Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor,
entre outras obras, de “Pensar Nagô” e “Fascismo da Cor”
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