Intervenção do Brasil na guerra eleitoral argentina tem custo
— Ele está mais “louquito” que o Bolsonaro —
disse Lula sobre Javier Milei, candidato da extrema direita na eleição
presidencial da Argentina. O governista Sergio Massa, ministro da Economia,
gostou da ironia sobre o adversário que é conhecido como El Loco.
— Deixa de procurar dólares e vá atrás de
votos — insistiu Lula,
como relatou Massa a jornalistas na viagem de volta a Buenos Aires naquela
quente e seca segunda-feira 28 de agosto.
— Todos estão trabalhando? Eles sabem da
importância do que têm pela frente? Se a direita ganhar será um retrocesso de
quarenta anos na América Latina…
— Sim, presidente. Estão todos trabalhando —
respondeu Massa, anotou a repórter Melisa Molina.
— Faça o que tiver que fazer, mas ganhe — retrucou incisivo, com a experiência de três vitórias em 34 anos de disputas presidenciais.
Lula apostou no candidato do condomínio
peronista, desde o início rachado na luta por espaços de poder entre o
presidente Alberto Fernández e a vice Cristina Kirchner. Perdeu com eles na
primeira rodada, a eleição prévia de agosto, quando os dois principais
candidatos da oposição somaram dois terços do eleitorado. Massa ficou em
terceiro lugar, com 27% dos votos.
Se Massa perder a eleição, Lula estará com um
sério problema na política externa, já convulsionada pelas guerras da Rússia e de
Israel: a vizinha Argentina terá um novo governo, que há meses ele hostiliza e
qualifica como ameaça de “retrocesso de quarenta anos na América Latina” — seja
do “louquito” Milei ou da conservadora Patricia Bullrich, aliada do ex-presidente
Mauricio Macri. Sem Massa no páreo, um deles assumiria a Presidência no dia 10
de dezembro.
Lula entrou conscientemente num jogo de alto
risco ao se meter na campanha do peronismo. Ano passado, pediu ao embaixador
argentino Daniel Scioli informações e uma coletânea de discursos do então
deputado Milei. “Me surpreendeu”, registrou Scioli em livro de memórias. “Me
disse que as pessoas estavam muito decepcionadas com a política, que entre os
jovens o ‘voto de rebeldia’ estava sólido e entendia que, para muitos deles, Milei
os representava.”
O peronismo é o conglomerado político mais
complexo da história, na bem-humorada definição do diplomata Marcos Azambuja.
Aos 78 anos, esse movimento exibe inédita fragilidade. A implosão da
organização sindical do trabalho, origem e base da sua eficiente máquina
eleitoral, fragmentou um eleitorado cujo comportamento se mantinha homogêneo
desde a formatação, em outubro de 1945, sob o poder absoluto do coronel do
Exército Juan Domingo Perón.
Apatia e deserção alentaram o antiperonismo.
Foram os pobres que impulsionaram Milei e Bullrich no voto de rebeldia contra a
degradação social e econômica. O candidato Massa é ministro da Economia de um
país com aumento recorde na produção de pobreza (40% da população) e,
paradoxalmente, no gasto público em subsídios às despesas familiares com
energia, transporte, saúde e educação. A hiperinflação é apenas expressão matemática
de um desajuste político. Os preços já não descrevem os riscos no descontrole
do presente, embutem o medo coletivo sobre o futuro. Em ação “preventiva”, por
exemplo, empresas de alimentos e bebidas anunciam aumentos acima de 30% para o
dia seguinte à eleição, não importa o vencedor.
Lula jogou com o peso do Brasil numa
intervenção eleitoral na Argentina. Produziu com Fernández uma espécie de
“plano de governo binacional”, registrou em livro o embaixador Scioli. Pediu
ajuda financeira à China, aos Estados Unidos e aos governos que integram o
clube do Brics. Foi a Paris insinuar, em discurso, um conluio para corrupção
entre o ex-presidente Macri, patrono da candidatura de Bullrich, e o FMI: “À
Argentina, da forma mais irresponsável, o FMI emprestou 44 bilhões de dólares a
um senhor (Macri) que era o presidente, e não se sabe o que (ele) fez com o
dinheiro”. Na sequência, como relatou a repórter Vera Rosa, mobilizou a
Corporação Andina de Fomento, onde o Brasil tem voz e voto, e o Banco do Brasil
numa bilionária operação de socorro ao governo argentino. E enviou assessores
de campanhas petistas a Buenos Aires para “ajudar na comunicação” do candidato
Massa.
Ele atravessou a fronteira sul e atropelou os
manuais de prudência política e diplomática para fazer aquilo que, muito
provavelmente, condenaria com veemência se qualquer governo estrangeiro fizesse
no seu país: tomou partido na guerra eleitoral dos argentinos. O tango de Lula
pode custar caro ao Brasil.
*Publicado em VEJA de 20 de outubro de
2023, edição nº
2864
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