Para professora da USP, mimos de Bolsonaro à Forças Armadas não se traduziram em apoio à ruptura institucional
Por Lucas Ferraz / Valor Econômico
A seguir os principais pontos da entrevista
de Maria Hermínia Tavares de Almeida ao Valor:
Valor: Como a senhora vê o Brasil um ano depois do 8
de Janeiro?
Maria Hermínia Tavares de
Almeida: O
tumulto de 8 de Janeiro foi parte de uma tentativa de golpe tabajara. O
ex-presidente Jair Bolsonaro, durante meses, tratou de desacreditar as
instituições eleitorais. Perdidas as eleições, incentivou os acampamentos de
seguidores fanáticos, na frente dos quartéis, pedindo intervenção militar.
Tendo adulado militares e PMs durante todo o mandato, parece claro que o
ex-presidente, lá de Miami, imaginava que uma arruaça de grandes proporções
pudesse fazer com que as Forças Armadas finalmente comparecessem para impor a
ordem e, consequentemente, impedir de alguma forma o governo Lula. Deu errado.
Valor: É possível arriscar um lugar para o 8 de Janeiro na história política brasileira?
Tavares de Almeida: Nesse sentido,
a tentativa de golpe de agora se assemelha muito ao hilário golpe dos
integralistas contra Getúlio Vargas, em 1938. Talvez o 8 de Janeiro passe à
história nessa categoria de intentonas fracassadas da extrema direita.
Valor: A reação institucional dos três Poderes foi
satisfatória?
Tavares de Almeida: A reação foi
muito forte, rápida e certeira. Ela começou antes, com o impecável trabalho do
TSE sob a presidência de Luís Roberto Barroso e depois com Alexandre de Moraes.
As lideranças do Congresso estiveram à altura. Mas, é importante lembrar que o
resultado seria outro não fosse a conduta dos chefes militares das três forças.
Sua lealdade à Constituição foi fundamental. Ela não entrou nos cálculos dos
golpistas que achavam que os benefícios e homenagens prestadas às Forças
Armadas, durante todo o governo Bolsonaro, e a inegável simpatia que por ele
nutriam muitos militares, seria suficiente para conquistá-las para o golpe.
Neste particular, não foi só a extrema
direita que se enganou. Setores da esquerda também se enganaram quando
imaginaram que os militares seriam cooptados para o golpe ou que as polícias
militares poderiam se rebelar em seu apoio. Funcionou a instituição militar
para além da simpatia política de muitos de seus membros pelo que Bolsonaro diz
e representa. Instituições são conjuntos de regras que enquadram o
comportamento de seus membros, mas dependem também das lideranças que as
encarnam. A derrota do levante golpista deve muito à inteligência política e à
prontidão do ministro Flavio Dino, à sábia decisão do presidente Lula de não
utilizar o recurso da GLO, à firmeza e coragem de Alexandre de Moraes e ao
comportamento impecável dos presidentes das duas casas do Congresso, Rodrigo
Pacheco e Arthur Lira, e dos chefes militares das três armas. Ter pessoas que
pensam institucionalmente no lugar certo, no momento certo, fez diferença.
Valor: Vimos gestos de cumplicidade dos comandantes
com o bolsonarismo, como os acampamentos nos quartéis, e um desses comandantes
se recusou a transmitir o cargo ao sucessor. Esses episódios não levam ao
descrédito deles?
Tavares de Almeida: Acho que não,
porque no final dependiam deles para ter o golpe. O que a gente precisa
entender é por que aconteceu isso. Que há, ou havia, simpatia dos militares por
Bolsonaro não tem dúvida. Aliás, o ex-presidente não fez outra coisa que
cortejar militares e PMs em todo o seu governo. Ele só fez políticas positivas
para as Forças Armadas. O paradoxo é que elas não aderiram. É verdade dizer que
os militares permitiram os acampamentos, que preferiam Bolsonaro ao atual
presidente, mas apesar disso tudo, no final, eles ficaram do lado da
Constituição. Se os três dissessem que aquilo era uma rebelião popular, e que
eles iriam apoiar, eles tinham derrubado [o governo]. No fundo, deve ter havido
um cálculo do custo político. Um dado importante é que eles se comportaram
institucionalmente.
Valor: Há excesso do Poder Judiciário no julgamento
dos responsáveis pelos ataques?
Tavares de Almeida: Meio que por
milagre, em 2021, o Congresso substituiu a Lei de Segurança Nacional herdada,
com modificações, do período autoritário, por uma lei mais moderna de Defesa do
Estado de Direito. Como um sapato novo que nos faz caminhar sem muita desenvoltura,
a nova lei ainda precisa de tempo para ir definindo, no detalhe, seus
procedimentos e a tipificação dos casos. O Poder Judiciário teve que
experimentar uma lei nova em folha para lidar com ataque de grandes proporções.
Não sou jurista, sempre tive pouca simpatia por penas muito severas. No caso
dos envolvidos, as penas estão previstas na lei, mas me parecem severas demais,
sobretudo porque os primeiros a recebê-las foram os soldados rasos da tropa
tabajara e não seus inspiradores, articuladores e financiadores.
Valor: O Judiciário terá o reforço no próximo mês de
Flávio Dino, figura fundamental na reação aos ataques de 8 de Janeiro. Como vê
a ida dele para o STF? O enfrentamento ao autoritarismo deve marcar o país nos
próximos anos...
Tavares de Almeida: Provavelmente,
e o enfrentamento se dá tanto no Executivo quanto na Corte Suprema. Ter uma
pessoa com formação jurídica, tarimba política e coragem no STF é algo
importante no processo de defesa da democracia. Era importante ter Flávio Dino
em Brasília no 8 de Janeiro. Agora, do lado do Executivo, vai depender quem
será o seu substituto no Ministério da Justiça.
Valor: Em que medida o 8 de Janeiro marca o terceiro
mandato de Lula?
Tavares de Almeida: Não sei. Só o
tempo poderá nos dizer.
Valor: O evento não fortaleceu um governo que se
iniciou frágil?
Tavares de Almeida: Não sei como
medir uma coisa dessa. Sei que o governo respondeu bem. Sem dúvida, enfraqueceu
o adversário. Eles entraram numa coisa violenta e perderam. Se fortaleceu o
governo, não sei.
Valor: Os militares tiveram um papel central no 8 de
Janeiro e terminaram o ano envolvidos numa nova GLO na segurança pública - que
o presidente Lula inicialmente era contra. Houve uma acomodação das Forças
Armadas no governo, que evita certas pautas para não criar “indisposição”. Era
o que poderíamos esperar, levando em conta o histórico brasileiro e do
presidente Lula?
Tavares de Almeida: Os governos petistas anteriores recorreram a GLOs, não é novidade. Minha impressão é que o governo ainda não sabe o que fazer na área de segurança pública, não tem objetivos claros, políticas definidas e clareza sobre os instrumentos à disposição. A última GLO é resultado dessa falta de clareza sobre o que fazer em uma questão tão sensível. Não tenho informação que me permita afirmar por que o governo vem evitando pautas como o restabelecimento da Comissão de Mortos e Desaparecidos. Faço parte de uma comissão de defesa do direitos humanos, a Comissão Arns, que batalha pela recriação da comissão como uma questão de justiça, ajuste de contas com o passado e reparação. Mas penso que essa não é uma questão que mobilize e sensibilize uma parcela importante da sociedade, quatro décadas depois do fim do regime militar. Entendo que um governo empenhado em reconstruir, em desradicalizar, em buscar convergências sobre questões do presente, procure evitar temas que dividem as opiniões não só entre militares e civis, mas entre esses últimos também.
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