sexta-feira, 5 de janeiro de 2024

José de Souza Martins* - Fragilidade do marco temporal

Valor Econômico

Nas culturas indígenas, o território é um instrumento da vida, não um mero instrumento de enriquecimento

O marco temporal é a limitação de durabilidade de direito que o Brasil oficial e branco decidiu sobrepor ao direito originário dos nossos indígenas às terras de vários modos reconhecidas como suas desde o período colonial. Aprovado, a maior parte de seus artigos foi vetada pelo presidente da República. Mas o veto foi derrubado pelo Congresso.

Um defensor desse marco argumenta que sem ele 15% do território nacional seria entregue a 1 milhão de indígenas, enquanto 85% caberiam a 206 milhões de brasileiros. Ou seja, uma suposta injustiça. O argumento é descabido: a imensa maioria desses 206 milhões não indígenas não tem acesso à terra nem o terá porque o mercado os exclui da possibilidade de tê-la. São 5 milhões os estabelecimentos agrícolas. Quando muito, uns 25 milhões de pessoas são deles proprietárias. Terra é aqui instrumento de injustiça social, não de injustiça tribal.

A economia tribal é moralmente oposta à economia do cálculo que justifica o marco temporal. Todos os seus membros são ativos na reprodução da organização social comunitária que dá sentido à sua economia. A economia oposta, a do marco temporal, é socialmente excludente na medida em que não emprega todos os que carecem de terra para trabalhar. Além disso, sendo a terra bem finito, não reproduzível, não pode ter o acesso a ela regulado pelos interesses dos que já a possuem. No mundo inteiro o acesso à terra é regulado por sua função social. Aqui, constitucionalmente, também. O marco regulatório, nesse sentido, viola a Constituição e as tradições do Estado brasileiro em relação ao uso e distribuição da terra.

Boa parte do problema repousa no desencontro antropológico em torno da concepção de ocupação das terras pelos indígenas. Analistas têm entendido que “ocupam”, no presente, significa atual ocupação econômica da terra, que é concepção de branco. A concepção indígena de espaço é a de território e não de “terra”, como a da terra de uma fazenda.

Acontece que o território indígena é constituído por espaços de diferentes temporalidades e que as terras em pousio não estão abandonadas, são terras do passado e do futuro, pelo seu retorno cíclico ao uso visível, no caso da agricultura, mas também no direito ao conjunto do território de perambulação tribal. As terras aparentemente não cultivadas estão situadas no espaço e no tempo do imaginário tribal de sobrevivência.

O artigo 231 da Constituição de 1988 diz detalhadamente: “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”. O artigo foi escrito numa perspectiva antropológica e por meio dela deve ser interpretado. O estritamente jurídico o mutila.

O constituinte não separou cada um desses direitos, mas reconheceu o seu caráter relacional. Um é mediação jurídica do outro, da totalidade que dá sentido a cada um desses direitos, no legítimo modo de viver e de ser do indígena.

“Ocupam” é nesse artigo da Constituição conceito que se situa no conjunto de direitos indicados no mesmo parágrafo, que são os que definem o que é ocupação da terra pelos indígenas. A concepção é “terras” e não terra, o que nas culturas indígenas diz respeito à relação de equilíbrio entre o homem e a natureza, isto é, o homem como expressão da mediação da natureza e como da natureza reprodutor para reproduzir-se como gente.

“Terra” não é nessas culturas um bem econômico, que o é na redutiva cultura mercantil do branco. Nas culturas indígenas, a natureza, isto é, o território é um instrumento da vida. Na cultura capitalista e rentista, como mera terra, é um mero instrumento de enriquecimento, de terra negociável e alienável, coisa que os territórios indígenas não são.

O peso do artigo da Constituição está sociologicamente e antropologicamente na concepção de “terras que tradicionalmente ocupam”. Precedida do esclarecimento detalhado de que com a Constituição “são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições”. As terras indígenas fazem parte desse sistema de valores e costumes, que a Constituição reconhece como legitimadores de domínio e senhorio.

Querer revogar o passado dessas populações para situá-las no tempo e na temporalidade dos que têm o monopólio do poder de interpretação da lei é fazer do direito um instrumento de usurpação de direitos para usurpar dos indígenas o fundamento material e natural de seu modo de vida. É de fato um ato genocida.

As nações indígenas poderão recorrer aos tribunais internacionais se necessário for para reaver o que é seu.

*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. É autor de, entre outros livros, “Capitalismo e escravidão na sociedade pós-escravista” (Editora Unesp, São Paulo, 2023).

Um comentário:

Daniel disse...

Excelente!