Cientista político ressalta atuação dos três Poderes e da comunidade internacional na resposta à intentona bolsonarista
Por Lucas Ferraz / Valor Econômico
A seguir os principais pontos da entrevista
de Carlos Melo ao Valor:
Valor: Como o senhor vê o Brasil um ano depois do 8 de
Janeiro?
Carlos Melo: Com certo
alívio. Poderia ser muito pior. O 8 de Janeiro não deu certo, houve uma
tentativa de golpe e escapamos. Um ano depois, poderíamos estar em situação
muito complicada. De alguma forma, o país conseguiu sair com sabedoria desse
processo. Quero destacar a inteligência do presidente Lula, porque parecia tudo
uma cilada. Qual cilada? Ele chamar uma operação de Garantia da Lei e da Ordem
(GLO) para colocar o Exército na rua e perder o controle. Soubemos depois que,
se não era o Alto Comando ou o Exército institucionalmente, havia muitos
oficiais, coronéis, majores, generais, muitos generais da reserva, todo mundo
envolvido. Havia setores das PMs. Então poderia ser muito ruim. Houve certa
sagacidade do presidente de não cair nisso e fazer uma intervenção civil
conduzida pelo Ministério da Justiça, por meio do Ricardo Cappelli, que foi uma
figura importante. Ele teve postura e autoridade. Poderíamos estar nesse
momento numa quadra histórica complicada, de perigo para os civis e com a
democracia em perigo. Eles tentaram o que tentariam em algum momento, se não
fosse o 8 de janeiro, seria 15 de janeiro, 16 de fevereiro, sei lá. Algumas
instituições agiram, como o STF. Algumas porque a Procuradoria-Geral da
República (PGR) se omitiu.
Valor: O termo “golpe” é questionado pelos
bolsonaristas. Do ponto de vista da ciência política, que elementos temos para
dizer que houve uma tentativa de golpe?
Melo: Um motivo simples: você ocuparia o centro do poder em Brasília, a Praça dos Três Poderes. E aí o recurso às Forças Armadas, por meio da GLO, poderia se voltar contra o presidente eleito. Não foi um golpe porque não aconteceu, mas houve uma tentativa. Há elementos clássicos, como o virtual envolvimento das Forças Armadas. Parecia haver um roteiro para que isso ocorresse, para que setores das Forças Armadas se mobilizassem ou se amotinassem.
Valor: Houve certo grau de sofisticação no
planejamento do 8 de Janeiro?
Melo: Não foi uma
revolta popular. As pessoas ficaram acampadas na frente dos quartéis por mais
de dois meses, financiadas. Churrascos, festas, ônibus. Não foi uma ação
espontânea, dizer isso é fugir da realidade. Soubemos depois que havia
planejamento, financiamento. Não dá para dizer que foi coisa de meia dúzia de
maluco inconformado, isso é má-fé, tentativa de mistificação política, de
falsear o episódio tentando minimizá-lo.
Valor: A reação institucional dos Três Poderes foi
satisfatória?
Melo: No final das
contas, foi. Achei interessante a visita do presidente aos escombros do STF,
com os ministros, seguido de parlamentares. Foi importante. O presidente do
Congresso, senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG), também teve postura ativa. Houve
um alinhamento que lamento que não tenha sido acompanhado, com a mesma postura
e determinação, pela PGR, que deveria ter cumprido o seu papel. Augusto Aras
tem posição bastante controversa nisso tudo. Ele e a subprocuradora Lindôra de
Araújo tiveram papel ativo na tentativa de minimizar e não responsabilizar os
responsáveis. Essas coisas marcam uma postura da PGR que, a bem da verdade, não
se restringe ao 8 de Janeiro, já vem de antes.
Valor: O terceiro mandato de Lula começou sob pressão
em razão da questão militar, mas de que forma o 8 de Janeiro muda o seu
governo?
Melo: O 8 de Janeiro
dá força para o governo. Os agressores transformaram o presidente e a
democracia em vítimas. Houve por parte da sociedade, das instituições, do
Congresso, da Justiça, da imprensa, da opinião pública, enfim, independente da
perspectiva que se tinha do presidente Lula ou de seu governo, e das restrições
que se pudessem fazer ao governo do PT, aquilo demarcou um divisor de águas.
Quem estiver a favor disso, não está no campo da democracia. Acabou sendo um
grande tiro no pé de quem tentou. Note que [o 8 de Janeiro] conseguiu alinhar
uma grande parte da sociedade ao lado não do presidente, mas das instituições
democráticas. Também a opinião pública internacional foi importante, como a
política internacional. As manifestações do presidente Macron, de Biden... A
reação internacional foi rápida e absolutamente necessária para ter claro que
não haveria apoio a aventura, o contrário de 1964. Não haveria apoio dos
americanos, da União Europeia, nem da América Latina. Foi importante para que
os radicalizados mais inteligentes e moderados percebessem que estavam
sozinhos. Se é que é possível usar essa categoria, inteligentes e moderados,
para eles.
Valor: Terminamos o ano com os militares de novo
envolvidos numa GLO, agora numa operação contra o crime organizado. O governo
Lula evitou certas pautas para não melindrar os militares. Esse tema poderia
ter sido enfrentado de outra maneira?
Melo: Dizer que
poderia é fácil, não temos a responsabilidade de decidir. Manifestações de
força, mais acaloradas ou voluntaristas, talvez não colaborassem com nada. Foi
necessário tratar desse processo com cuidado e zelo. O fato é que, um ano
depois, a temperatura baixou. O clima arrefeceu, precisa arrefecer mais.
Ajustes precisam ser feitos, como uma reforma institucional das Forças Armadas
na sua própria formação. Mas isso não se faz de supetão. O governo tem quatro
anos, ainda dá para encaminhar pautas importantes. Precisa olhar o que foi o
governo Bolsonaro. O que houve quando ocorre o julgamento do Lula e o
comandante do Exército faz nota em rede social... Havia um alinhamento de
setores importantes das Forças Armadas. Havia um ambiente complicado, muito
radicalizado. É a hora dos incendiários ou dos bombeiros? Parecia mais razoável
que os bombeiros atuassem. Precisamos ter uma relação mais democrática e
moderna com as Forças Armadas. Não podemos, a cada conflito, ficar na
dependência de como elas vão se posicionar. Algumas coisas começaram a
acontecer, uma lei que veda a atuação de militares da ativa na política foi
aprovada. Tiveram andamento lento? Talvez. Mas dentro do possível, houve [um
andamento].
Valor: O senhor vê excessos na atuação do Judiciário
no episódio?
Melo: Como a questão militar, o Judiciário requer um processo gradual de ajuste e aperfeiçoamento institucional. Houve um empoderamento, mas foi ele quem segurou a onda. Foram sobretudo o TSE e o STF que fizeram o enfrentamento ao bolsonarismo, na eleição e depois. É natural que tenha havido um robustecimento, agora precisa voltar ao eixo. Não pode um poder cercear o outro, coibir pautas conservadoras, orçamento secreto, dizer como o Congresso vai fazer. A conjuntura puxou os ministros do STF para a política além do razoável, mas isso num momento de barbaridade. Como posso dizer que aquilo não é razoável quando não há normalidade? O pêndulo precisou ir para um lado, agora precisa ocupar a sua oposição no meio, em condições normais. Acho que isso irá acontecer por iniciativa do próprio STF. A ex-ministra Rosa Weber baixou uma série de medidas sobre ritos e pedidos de vista. Isso foi importante. Não pode haver uma queda de braço [entre os Poderes], é preciso ser feito de forma institucional e o país se reorganizar. Há um desafio de organização institucional. O 8 de Janeiro expressou não só uma algazarra, mas um limite de desorganização institucional que precisa ser repensada para se restabelecer a normalidade democrática.
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