O Globo
Políticos sabem que, numa democracia, só o
voto salva — e o caminho mais curto para a salvação passa pela oferenda
Deus pode até estar em todos os lugares, mas
em nenhum é tão onipresente como na política.
Bolsonaro O tinha como cabo eleitoral,
encabeçando uma versão revista e recauchutada da Santíssima Trindade: “Deus,
pátria e família” — sendo a pátria a crucificada, e a família seu próprio clã.
Ainda que o Brasil estivesse acima de tudo, Deus estava acima de todos. Tão
acima que, apesar de onisciente, não perceberia as rachadinhas, o comportamento
criminoso durante a pandemia, a devastação ambiental, a venda das joias, a
incitação ao golpe e uma penca de outros pecados passíveis de penitência bem
maior que dois pais-nossos e quatro ave-marias.
Como quem acende uma vela para si mesmo e outra para o diabo, Deus não tem preconceito ideológico nem desampara quem o procure. Lula garante que sua volta ao poder foi coisa d’Ele — cometendo a heresia do machismo linguístico ao chama-lO de “o homem lá de cima” (linguagem neutra, só no discurso escrito, né?).
— Vocês votarem em mim foi ato de fé, de
coragem, que um milagre estava para acontecer nesse país — declarou, com um
olho na Bíblia e outro na urna. — Deus não é mentira; é a verdade, e não pode
usar em vão como eles usam todo santo dia — completou, usando o nome em vão,
como faz todo santo dia.
Políticos sabem que, numa democracia, só o
voto salva — e o caminho mais curto para a salvação passa pela oferenda, pelo
dízimo, pelo confessionário. Há mais ateus num avião em queda livre que em
campanha eleitoral. Que o digam Dilma
Rousseff e Fernando
Henrique Cardoso.
Sarney (rico governador do estado mais pobre
do país, chefe de um governo pródigo em nepotismo e corrupção) proibiu a
exibição de “Je vous salue, Marie” (de Jean-Luc Godard) “para assegurar o
direito de respeito à fé da maioria da população brasileira” — e mandou que
Deus fosse louvado em todas as cédulas (uma excrescência que corre o risco de
jamais ser revogada).
Ter cidadania brasileira não impede que Deus
preste serviços fora daqui. Sua mão teria ajudado Maradona a fazer um gol
decisivo nas quartas de final contra a Inglaterra, na Copa de 1986. E,
segundo Donald Trump,
foi Ele quem “evitou que o impensável acontecesse“ no atentado de 13/7. A mão
divina não deve ser mais a mesma, porque a bala ainda pegou de raspão.
Nas hostes infernais da oposição ao
Todo-Poderoso, os tinhosos, cabruncos e capirotos ganharam a companhia de duas
novas entidades malignas: fascistas e comunistas.
— Temos um mal pela frente, um capeta que
quer implantar o comunismo no nosso Brasil — vociferou um.
— Com Boulos eleito, poderemos dizer que
nunca mais os fascistas vão governar essa cidade e esse país — ululou o outro.
Além dos políticos, há mais uma categoria que
tem certeza da inexistência de Deus. São os charlatães, que exploram a boa-fé
alheia com “milagres” encenados para arrancar o dízimo — ou, como João de Deus,
obter favores sexuais. Eles não se arriscariam a arder no mármore do inferno
por toda a eternidade, pagando pelos pecados da ganância, da soberba, da
fraude, da luxúria se temessem a hora da verdade no Dia do Juízo.
Se Deus é um delírio, como O definiu Richard
Dawkins, o Brasil ainda deve demorar um pouco para sair do surto. Quem melhor
escreveu a respeito foi o compositor Chico César:
— Essa gente é o diabo e faz da vida de Deus
um inferno.
Não só da d’Ele. Da nossa também.
3 comentários:
O jornalista não quis assumir, mas é um ateu convicto e despreza a fé em Deus profundamente
Na sua alegoria da narrativa faz pouco de Deus e dos que verdadeiramente cultuam a sua fé
Excelente texto !
O anônimo parece verdadeiro intermediário entre Deus e os demais pobres mortais como nós. Será que tem procuração d'Ele??
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