O acórdão do mensalão tem 1.336 trechos suprimidos de manifestações de ministros do Supremo Tribunal Federal ao longo de 53 sessões. Dessas, 65% são de autoria do ministro Celso de Mello.
Foi na condição de decano, a quem se reconhece autoridade para serenar conflitos, que Celso de Mello, desde a véspera, dedicou-se a obter uma retratação do presidente da Casa, Joaquim Barbosa. Mas foi também na condição de quem mais zelou para que impropriedades proferidas durante o julgamento fossem excluídas do registro oficial da história, que Celso de Mello, tentou chamar Barbosa à razão.
Ao dizer que jamais deveria ter sido necessário aquele lapidar sermão, o ministro decano deixava claro, de partida, que aquele pronunciamento seria desnecessário se Barbosa tivesse se retratado da acusação contra Ricardo Lewandowski.
Celso de Mello remeteu-se a outro discurso, feito há 12 anos, quando saudou a posse de Marco Aurélio Mello na presidência da Casa. Naquele dia, evocou dois magistrados, um do STF e outro da Corte Suprema dos Estados Unidos, para homenagear os votos vencidos.
O primeiro foi Joaquim de Toledo Piza e Almeida, ministro da turma inaugural do Supremo, de 1890. Integrou o julgamento do habeas corpus apresentado por Rui Barbosa em defesa de 46 parlamentares, generais e intelectuais, entre os quais Olavo Bilac, presos e desterrados para a Amazônia. No habeas corpus, o primeiro da história brasileira, aquele Barbosa atacava o estado de sítio decretado por Floriano Peixoto, seu colega no gabinete Deodoro da Fonseca: "Nenhuma virtude pode pôr acima da lei o chefe de uma nação republicana".
Piza e Almeida, paulista de Capivari e abolicionista como Rui Barbosa, foi o único dos 11 a votar pelo habeas corpus. Enquanto a maioria do tribunal escudara-se na necessidade de um pronunciamento prévio do Congresso, Piza e Almeida sustentou a tese de que abusos do Executivo estão na jurisdição imediata do Supremo tenha ou não o Congresso se pronunciado sobre as medidas de exceção.
Antes de sair do tribunal, Rui Barbosa beijou-lhe a mão. Dias depois publicaria um artigo em que lhe prestaria homenagem: "Medo, venalidade, paixão partidária, respeito pessoal, subserviência, espírito conservador, interpretação restritiva, razão de Estado, interesse supremo, como quer que te chames, prevaricação judiciária, não escaparás ao ferrete de Pilatos! O bom ladrão salvou-se. Mas não há salvação para o juiz covarde".
O outro juiz citado por Celso de Mello foi contemporâneo de Piza e Almeida. Nos 30 anos em que foi ministro da suprema corte americana, Oliver Wendell Holmes Jr, se rebelaria contra a condição de prisioneiro da jurisprudência e passaria à história como um dos juristas mais citados daquela Casa.
Combatente da Guerra Civil americana ao lado dos confederados, Holmes criticava ativistas judiciais à direita e à esquerda. Dizia que tão importante para um juiz quanto conhecer as leis é estudar as motivações de seu tempo e evitar a grandiloquência: "Grandes questões e questões complicadas fazem um péssimo direito. Os grandes julgamentos são chamados de grandes não tanto pela importância que têm em delinear a jurisprudência a ser seguida, mas prioritariamente porque um acidente qualquer provocou um demasiado interesse no caso, apelando para sentimentos que distorcem o julgamento".
O julgamento em que exerceu seu mais famoso voto vencido aconteceu em 1895 quando o dono de uma padaria em Nova York recorreu de uma lei local que proibia mais de 60 horas por semana de trabalho.
Enquanto seus pares advogavam a proteção da 14ª Emenda ao liberalismo econômico, Holmes se contrapôs à maioria dizendo que a Constituição não era guardiã de teorias econômicas sejam quais fossem suas cores ideológicas. Defendia o direito de juízes novaiorquinos impor limites à atividade econômica com base na experiência vivida pela sociedade local.
A Joaquim Toledo Piza e Almeida e Oliver Wendell Holmes Jr. o decano do Supremo ainda acrescentaria Raimundo Faoro no rol dos juristas que louvam o voto vencido como legitimador das decisões judiciais: "É o voto da coragem, de quem não teme ficar só...".
Sobre o vencido da vez, Ricardo Lewandowski, registre-se a ordem que Victor Gabriel Rodriguez, antigo assessor, hoje professor da USP, relata, em livro, ter recebido ("AP 470", de Gustavo Pedrina, org.): "Leia sempre com atenção esses manuscritos, que terão sempre muitas deficiências quanto a requisitos de um habeas corpus ao Supremo Tribunal, mas que foram escritos por alguém em absoluto desespero que não tem quem fale por ele".
Lewandowski deu o caso por encerrado mas o incidente continuou a contrariar Barbosa, especialmente depois que Marco Aurélio Mello, na condição de segundo decano, descalçou as luvas para complementar Celso de Mello: "Censurar posturas diversas daquela que se tem e, a um só tempo, alardear modernidade e pluralidade soa, no mínimo, como hipocrisia. Uma sociedade aberta, tolerante e consciente pressupõe escolhas pautadas nas várias concepções sobre os mesmos fatos".
"Ao trabalho, ministro Toffoli", disse Barbosa, impaciente, em meio a intermináveis desagravos. A disposição de ministros em se alinhar ao lado de Lewandowski não se traduziu, como se previa, em voto de adesão.
Na sessão que originou o imbróglio da chicana, o revisor do mensalão se dissera arrependido de ter votado contra a demanda de Bispo Rodrigues de ter sua condenação por corrupção passiva regida pela lei anterior à atual. A mudança da lei se deu no decorrer do crime pelo qual foi condenado. Vencido por oito de seus colegas, Lewandowski talvez tenha sido um dos derrotados mais desagravados do Supremo.
"A história tem registrado que, nos votos vencidos, reside, algumas vezes, a semente das grandes transformações", disse o decano ao concluir sua fala. O ministro mais zeloso com os anais deixava registrado ali sua intenção de não passar a história como a voz que ignorou tão eloquente voto vencido.
O mais novo magistrado da Casa, Luís Roberto Barroso, que já afirmara ser o mensalão não o maior escândalo de corrupção e, sim, o mais investigado, voltou à carga dizendo que teria se posicionado de forma distinta da maioria em muitas das condenações se estivesse no julgamento desde o início.
Definidos vencedores e vencidos, a disputa dos que julgaram o mensalão é pelo registro que deles fará a história.
Fonte: Valor Econômico
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