- O Estado de S. Paulo
Nenhuma sociedade deixa de cultivar mitos, ilusões e autoenganos, pois produzem conforto íntimo aos indivíduos, assim como respondem às perguntas incômodas, em particular aquelas associadas aos mistérios do universo, da vida e da morte ou à imprevisibilidade da natureza. Por essas e outras razões, precisamos de mitos para trilhar o curso de nossa existência. Suas manifestações diminuem nas sociedades mais secularizadas e de maior escolaridade, mas continuam existindo. Mitos atribuem significado à aventura humana e, por isso, não são exclusivamente nefastos, criando imagens postiças da realidade e o domínio do falso. Mitos podem ser bem-vindos. Na época natalina, por exemplo, os mitos associados às festas e à passagem do ano invadem alegremente nossas mentes e determinam nossos comportamentos, do consumismo às esperanças relativas ao “novo ano”, como se a mera passagem de um dia para o outro determinasse algo essencialmente diferente.
É um curioso momento, quando a hipocrisia dos indivíduos atinge sua culminação, em meio às compras descontroladas e à infantilização do período.
No campo da política os mitos prosperam, pois a ânsia do poder tudo parece permitir. Curtas ilustrações: não seria mitológico afirmar que o PT é um “partido de esquerda” já que em nossos dias ninguém sabe realmente o que significa “ser de esquerda”? Essa é uma tradição política que nasceu em razão de uma via anticapitalista, pois foi a orientação que usualmente identificou o posicionamento à esquerda. Tornou-se caricatural no caso brasileiro, pois entre nós a “esquerda no poder” passou a significar apenas inflar irracionalmente o Estado, alocar cargos para os amigos ou organizar alguns esquemas nada lícitos de apropriação dos fundos públicos. Aliás, outro mito é aquele que corresponde esquerda a algo bom e virtuoso. Por que seria assim? Porque é tradição associada às classes desfavorecidas, o que atribuiria à esquerda uma virtù insuperável. Por isso, no primarismo binário que nos guia, a esquerda agregaria os excelsos e sua oposição, a direita, reuniria os canalhas da sociedade. E temos, então, uma sociedade em que ninguém quer ver-se à direita, consagrando outro mito.
Nos tempos brasileiros recentes, os mitos se multiplicam e nos atormentam. Cito dois deles, repetidos à exaustão com ares de suposta gravidade explicativa. Enganam a maioria dos cidadãos, que parece julgar que não seriam ocultações da realidade, mas fatos concretos. Resultado: todos papagueiam esses mitos. O primeiro deles diz respeito à apregoada queda da desigualdade social em nosso país durante os anos lulistas. É um mito surpreendente, pois tem sido enfatizado por economistas que ocupam posições de autoridade. A confusão é simplória e causa perplexidade que o argumento seja repetido sem o rigor que seria esperado, em face do nosso histórico de desigualdades.
Em síntese: o que se observa é um fenômeno parcial e restrito, de fato, à redistribuição forçada entre aqueles que recebem renda, especialmente do assalariamento, beneficiando os estratos de renda mais baixa, em detrimento dos detentores de renda elevada, que são tributados na fonte. As faladas “políticas sociais” apenas concretizam essa transferência, sem promover, contudo, a democratização efetiva da riqueza geral acumulada na sociedade. Em outras palavras, nos anos lulistas não houve nenhuma redução da desigualdade social entre nós, mas somente um abrandamento marginal da espantosa assimetria registrada na distribuição dos rendimentos captado pelos levantamentos de dados do IBGE. Como este não apura a riqueza em seu sentido abrangente e completo, especialmente a patrimonial e sua valorização ao longo do tempo, além de outros ganhos igualmente não quantificados, é praticamente certo, pelo contrário, que durante os anos deste século a desigualdade social se tenha elevado.
É inacreditável que economistas e outros estudiosos continuem reiterando o mito da parte e ignorando os fatos do todo, insistindo ainda com tolices relativas à formação de uma nova classe média e outras mistificações. Reduzir os salários nominais dos funcionários públicos, por exemplo, para transferir recursos aos mais pobres, como foi sugerido recentemente, é outra medida pobremente diversionista que não mudará a desigualdade social. Tornar sinônimos a distribuição de rendimentos e a desigualdade social é um erro crasso. A quem interessa o equívoco?
O outro mito que realço brevemente diz respeito aos famosíssimos “movimentos sociais”, entidades ubíquas, dizem tantos, que sempre “precisam ser ouvidos”. Mas, no Brasil atual, praticamente inexistem movimentos sociais. Estes têm um estatuto sociológico bem definido, respondem a determinadas privações sociais temporárias e, por isso, nascem e desaparecem. Os movimentos sociais emergiram nos anos de transição à democracia, mas, em sua grande maioria, beneficiados por fundos públicos, se burocratizaram em organizações políticas, quase todas abrigadas sob o guarda-chuva petista, que passou a instrumentalizá-las para atingir os seus objetivos partidários. É exasperante, portanto, ouvir levianas autoridades afirmarem que “consultaremos os movimentos sociais”, apenas refletindo mais uma dimensão de nossa imensa mitologia.
Precisamos confrontar e desconstruir o lado infesto dos mitos em nossa sociedade. É uma de nossas tarefas urgentes iluminar este lado sombrio e ameaçador das ilusões que cultivamos, a única via para o aprimoramento da qualidade da política de nosso país. Se for mantida a estrutura mitológica que nos oprime e confunde, serão muitas as dificuldades para chegar ao país que almejamos, o qual ecoaria a parte radiante dos mitos coletivos, aqueles que nos motivam para dias promissores e mais justos.
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* Zander Navarro é sociólogo e pesquisador em ciências sociais
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