- Valor Econômico / Eu &Fim de Semana
A vitória de Temer no TSE me fez lembrar de trecho do filme "Estrelas Além do Tempo" ("Hidden Figures", no original). A história se passa nos EUA da década de 1960, ainda sob a vigência da segregação racial no Sul do país. Uma funcionária da Nasa tentava ser a primeira negra a fazer um curso de engenharia numa escola exclusiva dos brancos. Buscou no Judiciário seus direitos, mas o juiz lhe disse que não podia ir contra a legislação segregacionista. Diante disso, ela lembrou que o magistrado fora pioneiro em várias coisas em seu universo social, sendo o primeiro de sua família a entrar na universidade. Aí então ela faz a pergunta decisiva, mais ou menos nos seguintes termos: "De que lado você vai querer ser visto no futuro, como aquele que ficou com o seu tempo ou entre os que mudaram sua época?"
O fato é que quatro dos ministros do TSE, dois deles escolhidos diretamente pelo atual presidente, escolheram ficar do lado do passado, como os fazendeiros e parlamentares brasileiros que lutaram contra a escravidão, dizendo que tinham direitos adquiridos sobre os escravos. A história lhes reservará o lugar daqueles que lutaram contra a transformação do país e mantiveram, em nome das leis vigentes (ou da intepretação peculiar delas), um governo em que boa parte dos integrantes está lutando para não ser condenada pela Justiça por conta da corrupção.
Em linhas gerais, quatro fatores explicam essa decisão: a composição do Tribunal Superior Eleitoral, a aliança de Gilmar Mendes com políticos contra o "espírito Lava-Jato" que predomina no Ministério Público, a pressão por governabilidade advinda do mercado e a incerteza em relação à sucessão de Temer. Este último ponto merece destaque, pois se tivesse havido um acordo entre as principais forças congressuais, em particular entre os integrantes da ampla coalizão governista, é provável que a decisão do TSE fosse outra.
O presidente Temer não luta solitariamente para se manter no poder. Ele representa, na verdade, um grupo político bem amplo, cuja base é o PMDB, mas cujas ramificações pegam quase todos os integrantes da coalizão governista. No curto prazo, duas coisas os unificam. Em primeiro lugar, a disputa de poder contra o petismo e qualquer outra força que se coloque na posição de possível adversário na disputa eleitoral de 2018, ou que seja capaz de mobilizar às ruas por eleições diretas já. E, em segundo lugar, a necessidade de vários deputados e senadores se protegerem da Operação Lava-Jato e outras investigações. Obviamente nem todos que estão no primeiro grupo estão no segundo, mas os dois fatores evidentemente se somam.
Mas, no médio e longo prazo, uma coisa maior está em jogo: o modo tradicional de se fazer política, que passa pela ocupação de postos governamentais, do plano subnacional ao nacional. Essas duas esferas de poder se retroalimentam. Ganhar eleições municipais e estaduais, ocupando suas máquinas estatais, permite construir lealdades que não só permitem o domínio local, como também dá a esses políticos grande poder de barganha nas eleições para postos federais, particularmente para a Câmara dos Deputados. Porém, é fundamental conquistar o Executivo federal para garantir vários recursos essenciais à manutenção dos poderes locais. São recursos financeiros, regulatórios e de poder burocrático-administrativo com impacto sobre as políticas públicas que se espraiam pelo país.
O exercício desses poderes é muito mais regrado democraticamente hoje do que em qualquer época de nossa história. Mas ainda há grande espaço para o exercício discricionário do poder da caneta, principalmente a do presidente. O PMDB e outras legendas com modus operandi tradicional sabem da importância da articulação entre os níveis de governo e da centralidade da Presidência nesse jogo, embora o presidente tenha, em maior ou menor grau, que negociar, seduzir e, em última instância, ameaçar os grupos alojados nos planos estadual e municipal, para assim obter apoios essenciais à governabilidade.
Na verdade, a força do Executivo federal vai além da dinâmica intergovernamental. Seu poderio lhe permite articular ações junto ao empresariado, aos movimentos sociais e ao Judiciário, como bem demonstrou a decisão do TSE. Claro que em época de crise, como a atual, essa força se reduz, todavia, ela nunca pode ser subestimada, especialmente quando usada pelos políticos mais conhecedores dos meandros da política brasileira, como os atuais ocupantes do Palácio do Planalto.
Há, no entanto, um outro lado no processo político. Desde as jornadas de junho de 2013 ocorreram vários fatos e processos que apontam para a fragilização do sistema político, incluindo aí seus atores tradicionais. Operação Lava-Jato, impeachment, perda de popularidade dos principais partidos, clamor popular por nomes novos, em suma, são várias questões que abrem as portas para a mudança. Mas fica a pergunta: o quanto de transformação efetivamente acontecerá? Ou, tomando o problema de outro modo: o quanto de poder ainda permanecerá sob a lógica da política ao estilo pemedebista?
É bem provável que não haja aqui uma resposta dicotômica. Não há um vencedor completo dessa contenda e não sabemos, por enquanto, a medida do poder que cada polo, e suas possíveis combinações, terá em 2018. Mesmo assim, percebe-se que no momento os atores governistas preferem majoritariamente, ainda que de forma envergonhada, ficar com Temer. A resposta a essa pergunta é mais fácil quando pensamos no PMDB, por obviedade, e também nos partidos menores do centro para a direita, que dependem muito do jogo clientelista. Fica mais difícil entender essa situação quando está em jogo a decisão do PSDB.
O posicionamento dos tucanos é complexo, envolve conflitos internos e vários motivos. Talvez a coisa menos relevante é o argumento a favor das reformas, uma vez que é possível votá-las sem ter cargos no governo e pertencer formalmente à base aliada. A tentativa de salvar o senador Aécio Neves e o medo de outros implicados na Lava-Jato são fatos que têm importância, mas não explicariam sozinhos essa decisão. O temor de que cresça o movimento por Diretas-Já, com uma possível ascensão de Lula ou de alguém de fora do sistema, é igualmente relevante. Mas também existe a dificuldade de romper por completo, pelo menos por ora, com o esquema político tradicional liderado pelos pemedebistas, seja porque vários governantes peessedebistas nos Estados e municípios temem represálias do governo federal, seja porque se espera utilizar a articulação entre as máquinas governamentais para obter melhores resultados nas eleições congressuais e presidenciais de 2018.
Portanto, além de buscar proteger alguns de seus líderes, o PSDB teme romper por completo com o PMDB por conta das possíveis consequências eleitorais em 2018, tanto no plano local como no pleito presidencial. Tal visão segue um cálculo arriscado, porque ela desagrada uma parte grande do eleitorado, especialmente nas médias e grandes cidades do país. Será possível dizer-se moderno, quer seja Alckmin quer seja Dória, abraçando Romero Jucá ao longo da campanha? Não há o risco de o candidato presidencial tucano ser o Ulysses Guimarães da eleição de 1989, o qual embora apresentasse a progressista Constituição cidadã de 1988 como sua plataforma, foi visto pelo eleitorado como o político tradicional que estava ao lado do impopular Sarney? Uma coligação com o PMDB não seria, sobretudo na eleição nacional, um suicídio político?
Só é possível dizer que, por ora, o PSDB prefere aliar-se ao atraso representado por um governo liderado pelo PMDB. Bem lembrou o jurista Miguel Reale Júnior, tucano de primeira hora, que o partido nasceu para se diferenciar do pemedebismo, e foi isso que permitiu, anos depois, a chegada ao Palácio do Planalto portando um discurso de mudança. Será difícil vender-se como novidade e ator modernizador ao lado de Michel Temer.
O mais triste nesse casamento do PSDB com o Governo Temer, como de resto também pôde ser visto nos erros cometidos recentemente pelos petistas, é que há ainda um longo caminho para mudar a lógica perversa da política tradicional brasileira. Para quem quer entender melhor isso, recomendo o documentário Primavera do Brasil, que trata da eleição em um pequeno município pernambucano, com 14 mil habitantes, em 2016. O filme mostra a história de um candidato, Xandeco, que concorreu pela Rede e tentou fazer uma campanha diferente dos padrões coronelistas clássicos. Isso se refletiu na forma de financiamento e prestação dos recursos de campanha, bem como no diálogo que foi feito com a população local, buscando romper com o clientelismo e o paternalismo que vigora em boa parte do país.
Sem querer ser "spoiler", o final do filme é a derrota do novo e a vitória da política tradicional. Claro que temos vários brasis em nosso território nacional, e há diferentes padrões de competição e resultado político. Mas a manutenção de Temer no poder revela que muita gente, políticos e atores sociais variados, ainda bebe na mesma fonte patrimonialista que dificulta a criação de um país mais justo e democrático.
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Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e coordenador do curso de administração pública da FGV-SP,
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