quarta-feira, 30 de maio de 2018

Luiz Sérgio Henriques: Armênio Guedes (1918-2015)

- Gramsci e o Brasil 

Faleceu ontem em São Paulo (11/03/2015), aos 97 anos, Armênio Guedes, dirigente histórico do antigo Partido Comunista Brasileiro e presidente de honra da Fundação Astrojildo Pereira. Baiano de Mucugê, criado em Salvador e tendo passado por sua Faculdade de Direito, que abandonou pouco antes de se formar, Armênio participou de uma geração brilhante de políticos e intelectuais democráticos e de esquerda, entre os quais João Falcão, Aydano Couto Ferraz, Jorge Amado, Edson Carneiro, Carlos Marighella e muitos outros.

Tendo aderido ao PCB nos anos 1930, sob a inspiração do antifascismo, Armênio guardou desta experiência original a marca das posições de frente com os adeptos do pensamento liberal, que carregou mesmo nos momentos de maior sectarismo do comunismo brasileiro e internacional. Assim, logo depois do célebre XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética, que denunciou os crimes que haviam acompanhado a construção do socialismo de Estado sob a direção de Stalin, Armênio esteve entre os que mais se empenharam, no PCB, por uma profunda revisão de métodos, que atualizasse a teoria e a prática dos comunistas brasileiros.

Não por acaso, Armênio participa da redação do “Manifesto de Março de 1958”, ao lado de outras personalidades com pensamento mais ou menos próximo do seu, como Luiz Carlos Prestes, Giocondo Dias e Jacob Gorender. Este “Manifesto”, ao destacar de modo inovador a importância da “questão democrática”, ao lado da “questão nacional”, assinalou uma mudança de rumos na cultura dos comunistas, em direção à plena incorporação, que se daria nos anos seguintes, dos métodos da democracia política e sua valorização acima de qualquer ambiguidade.

Se não foi suficiente para impedir açodamentos e equívocos na grande e terrível crise de 1964, o “Manifesto de 1958” forneceu instrumentos para a política de resistência pacífica e legalista do PCB ao regime ditatorial, uma política que teve Armênio como um de seus defensores mais destacados e coerentes. Armênio, então no estado da Guanabara, era a referência para o trabalho partidário tanto com os jovens intelectuais, quanto com a velha “classe política”, que a seu modo se opunha tenazmente ao regime, e as novas lideranças que surgiam no interior do MDB e do movimento democrático em geral. Aqui, seu nome deve ser permanentemente lembrado ao lado de singulares personalidades do comunismo brasileiro, como Luiz Inácio Maranhão Filho, Giocondo Dias, Marco Antônio Tavares Coelho, Salomão Malina, João Massena e outros dirigentes com clara visão política dos problemas e perspectivas postos pela “frente democrática” contra o regime militar.

No início da década de 1970, Armênio foi forçado a se exilar no Chile de Allende, depois de ser identificado e abordado por agentes da CIA no Brasil. Neste Chile que buscava um caminho democrático para o socialismo, teve continuidade a trajetória de Armênio, ponto de união entre exilados de diferente formação política e cultural. A sangrenta derrubada de Allende, em 1973, marcou nova parte do percurso de Armênio no exílio, já em linha com os mais arrojados políticos e teóricos que se afastavam da ortodoxia soviética, como é o caso do Partido Comunista Italiano e de dirigentes da estatura de Antonio Gramsci, Palmiro Togliatti e Enrico Berlinguer.

Deste último, aliás, Armênio assimilou plenamente, e até o final de sua vida, a ideia de que a democracia política, antes de ser “burguesa”, como afirmava a ortodoxia, era na verdade um “valor universal”, de que as classes subalternas não podiam mais abrir mão, sob o risco de reproduzirem novas experiências autoritárias ou totalitárias, como as do chamado “socialismo real”.

A derrocada da União Soviética e deste tipo de socialismo encontrou Armênio firme e sereno em suas convicções reformistas. Uma palavra — reformismo — que fez questão de reabilitar em diversas intervenções públicas, afirmando explicitamente, por exemplo, que “[...] a Revolução de Outubro, que por tanto tempo nos serviu de modelo, deve ser considerada a última revolução do século XIX. E a ‘revolução democrática’ dos nossos dias, quer dizer, os modos de se desenvolver a luta revolucionária depois do ‘grande ato metafísico de Outubro’, está rigorosamente por ser inventada”.

A vida luminosa de Armênio Guedes, que acompanhou a parábola da experiência soviética e dos comunistas brasileiros, acaba por se confundir com as esperanças de renovação do pensamento e da prática da esquerda, na perspectiva de uma mudança social que reforce simultaneamente os espaços de liberdade de cada indivíduo e a trama plural de uma comunidade baseada nos valores da solidariedade e da fraternidade. Armênio Guedes continuará a ser um dos pilares desse tipo de concepção e de luta por um socialismo reconciliado com a democracia — algo, como sabemos, rigorosamente a ser inventado, para usar suas próprias palavras.

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Luiz Sérgio Henriques, ensaísta, tradutor, um dos organizadores das Obras de Antonio Gramsci no Brasil.

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