Apoio popular a demandas dos caminhoneiros não justifica abusos da paralisação
Após oito dias do mais intenso boicote ao abastecimento de gêneros de primeira necessidade já registrado no Brasil, a paralisação dos caminhoneiros deu nesta terça (29) o primeiro sinal de arrefecimento. Combustível, embora em pouca quantidade, começou a chegar aos postos em várias cidades do país.
É preciso acompanhar com cautela os desdobramentos dessa crise pelos próximos dias, mas não é improvável que o impasse se dissolva paulatinamente.
Justifica-se o alívio com essa expectativa de desfecho, pois a asfixia progressiva de bens e serviços indispensáveis à manutenção da vida e da paz nas cidades é uma perspectiva realista e em marcha.
Mas seja para evitar que o espectro do colapso urbano volte a avultar-se, seja para distribuir com mais justiça a conta a ser paga, não deveriam ser esquecidos os papéis censuráveis desempenhados pelos principais atores desse drama.
Os caminhoneiros e os empresários de transportes têm um problema de custos crescentes, causado pelo surto de alta internacional do petróleo e pela desvalorização do real em relação ao dólar. A retomada macambúzia da atividade econômica dificulta o repasse dessa carestia ao preço final do frete.
Não são, nem de longe, a única categoria a enfrentar a realidade áspera do Brasil estropiado pela grande recessão. Nem por isso estão desprovidos do direito de organizar-se para pleitear do poder público o que julgam ser seu direito.
Ao fazê-lo nesta hora, o movimento galvaniza um sentimento popular difuso —alicerçado na dureza generalizada que se tornou a tarefa de ganhar o pão e na avalanche de flagrantes de desabrida corrupção na política— de repulsa ao poder estabelecido; de oposição a “tudo o que está aí”.
O Datafolha confirma essa hipótese, ao revelar apoio quase universal, atingindo 87% dos brasileiros, à paralisação nas estradas.
É preciso respeitar as leis, entretanto. Empresários que estimulam o boicote cometem crime. Caminhoneiros que sufocam o abastecimento de alimentos e combustíveis sem respeitar o atendimento às necessidades básicas infringem a Lei de Greve e levam sofrimento desnecessário a dezenas de milhões de brasileiros indefesos.
Esse cerco selvagem às cidades, sem controle nem lideranças representativas, mostra-se uma abominação a ser combatida.
As autoridades de que o Brasil dispõe para defender o interesse público diante da minoria rebelada e poderosa mostraram-se incompetentes e mal informadas. Agiram tarde e pessimamente.
Os três ministros —Eliseu Padilha (Casa Civil), Raul Jungmann(Segurança Pública) e Carlos Marun (Secretaria de Governo)— encarregados de gerir a crise falaram bem mais que agiram, negociaram com quem não podia cumprir o assinado, porque não comandava a massa parada nas rodovias, e torraram uma dinheirama dos contribuintes em acordos fracassados.
O Brasil tem 13,4 milhões de desempregados, entre outros desafios sociais dessa magnitude. Não parece fazer sentido gastar bilhões, que o Tesouro terá de tomar emprestados a juros de mercado, com centenas de milhares de caminhoneiros em dificuldade, mas empregados.
Se o governo não consegue fazer frente a forças que chantageiam os consumidores e impor um mínimo de racionalidade às negociações, o governo é desnecessário.
A mesma fatia assoberbante de brasileiros que apoia a paralisação dos caminhoneiros, no Datafolha, rejeita pagar a conta das concessões, que virá sob a forma de mais impostos ou com o corte de gastos.
Essa aparente contradição na opinião pública só se resolve com a sóbria diligência dos representantes ao decidir como obter e gastar o dinheiro do cidadão.
Outro aspecto deplorável é a falta de energia das autoridades, federais e estaduais, para o emprego eficiente da força policial em situações de flagrante ilegalidade.
Quem bloqueia vias, impede o acesso a recursos de primeira necessidade e intimida os que não querem participar da greve precisa ser reprimido imediatamente e levado às barras dos tribunais.
A docilidade com que abusadores do direito à paralisação foram tratados abre precedente para arruaceiros de todo gênero, que já ameaçam seguir o exemplo.
Essa doença autoimune que atiça os sentidos de atropeladores da ordem e parasitas das rendas nacionais está também associada ao aviltamento da Presidência da República. Michel Temer, que na opinião desta Folha há muito tempo deveria estar fora do cargo se defendendo de graves acusações, tornou-se um cadáver entronado.
Toda a energia política de que dispunha, consumiu-a nas lutas intestinas para a preservação de seu cada vez mais inútil mandato. É uma pena que as eleições não possam ser antecipadas. Apenas elas poderão revestir o núcleo do poder federal da fortaleza necessária para enfrentar a longa travessia à frente.
Nenhum comentário:
Postar um comentário