terça-feira, 23 de outubro de 2018

'Democracia é uma máquina de moderar posições', diz cientista político

Fernando Schüler avalia que eleição de 2018 é diferente por envolver 'guerra cultural'

Bernardo Mello | O Globo

RIO — Doutor em filosofia, o cientista político e professor do Insper Fernando Schüler vê revolução digital e guerra cultural nas eleições brasileiras . Ele acredita que o candidato do PSL à Presidência, Jair Bolsonaro, se eleito, será limitado pelas instituições.

• A democracia corre risco?

O Brasil é de fato um país com instituições maduras, independentes. Não é uma república de bananas. Vejo intelectuais do exterior dizendo que estamos à mercê de um líder fascista, populista, autoritário. É uma incompreensão da capacidade de moderação que as nossas instituições têm.

• A campanha de Bolsonaro tem recuado em várias declarações consideradas antidemocráticas. É só maquiagem de campanha?

Minha impressão é que esse último episódio do (deputado federal) Eduardo Bolsonaro é um exemplo significativo do poder regulador da democracia. Há uma declaração como essa, que contém um elemento antidemocrático, e imediatamente você tem uma reação da sociedade civil, da imprensa. Depois, uma negação do próprio candidato e um recuo por parte do Eduardo Bolsonaro. Não me refiro apenas à força das instituições formais. A força de uma democracia também se dá na cultura política, nas redes sociais, na opinião pública difusa dos cidadãos, em um conjunto de crenças arraigadas que servem como contrapeso a autoritarismos.

• A resposta dos ministros do STF foi adequada?

Acho que a ministra Rosa Weber deu uma resposta suficiente, no tom adequado. A soberania das instituições muitas vezes se mostra no silêncio. Temos que parar de botar lenha na fogueira. Tem muita gente gostando de brincar disso no Brasil.

• O senhor fala que temos uma democracia “mais barulhenta”. Em que sentido?

A democracia não voltará a ser o que era antes da revolução tecnológica. Será mais instável, tenderá ao baixo consenso. E as pessoas terão que se acostumar, é o novo normal. Você tinha milhares de pessoas participando sob o filtro das instituições, e hoje em grande medida esses filtros perderam relevância. A internet é um ecossistema de baixa empatia. Cada indivíduo tem muito pouco a perder sendo um radical na internet. O contato real entre as pessoas é muito baixo, você se comunica com avatares. O custo de agredir é muito baixo, e o benefício é relativamente alto. Você quer audiência, então tende a ter posições mais estridentes.

• Nesse contexto, as fake news tendem a se prolongar como parte da democracia?

Acho que as fake news têm dois sentidos. O mais evidente é o da notícia falsa, que em grande medida é o alvo dessas agências de checagem de fatos. É um problema com o qual você pode lidar de alguma maneira. Agora, existe outro sentido, que é a distorção da informação. É a informação descontextualizada, a conclusão equivocada a partir de fatos objetivamente corretos, a teoria da conspiração, é a manchete que não combina com o texto... Isso é da natureza das redes sociais, não tem controle. Eu não esquento a cabeça com isso, sugiro que ninguém esquente.

• A tecnologia, na medida em que aumenta a participação das pessoas no processo político, não muda isso?

O que a tecnologia fez foi dar poder ao alienado do jogo político. E o alienado se transformou em hooligan , num torcedor apaixonado. As pessoas tendem a se relacionar com política como se relacionam com futebol. Por que se permitem isso? Porque a capacidade de decisão é baixa, e a capacidade de socializar o custo é brutal. Quem não entender isso vai ficar falando no vazio sobre a democracia. A democracia digital explodiu aquilo que a democracia tinha como base, sem mudá-la. Deu poder ao cidadão, que continua agindo como um irresponsável. Produzir consenso numa sociedade polarizada, com grupos de pressão mais organizados, será um desafio do próximo governo.

• Com militantes aparentemente mais ativos nas redes, Bolsonaro tirou vantagem nesse ponto?

A democracia é uma extraordinária máquina de moderar posições políticas. É uma máquina inclusiva. Você precisa abrir espaço na política para o que Bolsonaro representa. Você pode contestar, fazer oposição, mas não pode negar a legitimidade. Quando você chama de fascista, nazista, de “coiso”, inominável, você trata seu adversário como inimigo, está dizendo que não há espaço para ele. E isso é ruim. Por que a democracia não pode moderar as posições do Bolsonaro, como moderou as do Lula? Bolsonaro vem de uma raiz autoritária, desperta confiança sua adesão à democracia. Mas o fato dele moderar seu discurso nesse 2º turno é um pequeno sinal. Bolsonaro se mostrou eficiente como ator eleitoral. Foi um exímio operador deste mundo estranho ao sistema político tradicional. O desafio é se terá a mesma eficiência no âmbito das instituições políticas.

• Como essa eleição é diferente das anteriores?

É uma eleição marcada pela guerra cultural. Vai além da discussão política. Envolve ética, moral e chega até os limites da religiosidade. Isso explica, em parte, a polarização, e também o resultado desta polarização. E isso tende a aumentar o nível de não comunicatividade. Reduz o espaço do diálogo, do dissenso, de um eleitor que assiste ao debate e pode mudar de opinião.

• Qual é a relação desta guerra cultural com a atenção da esquerda a bandeiras progressistas, como aborto, drogas e feminismo?

Na verdade, as eleições globalizaram a política brasileira. Essa temática cultural e moral é da política contemporânea, não só do Brasil. Em boa parte dos países você tem o tema dos refugiados, que é uma forma de traduzir o conflito cultural, e discussões sobre nacionalismo. No Brasil, não temos esse populismo xenofóbico. A marca do nosso neopopulismo é o apelo genérico à ordem e à retórica antissistema. E há também a pauta do conservadorismo de costumes, que não é nova. Ela existe na sociedade, o que se reflete em certa medida no tamanho da nossa população evangélica. E Bolsonaro tem vantagem nesse público.

• De onde surge esta polarização?

Esta cisão vem desde os anos 2000. Na eleição do Lula, em 2002, ele instaura no Brasil uma narrativa excludente, do "nunca antes nesse país", e cria as condições para que a sociedade vá se polarizando. Bolsonaro é, em grande medida, o resultado de uma polarização que já vem de longe. Houve um momento em que Lula não tinha oposição no Brasil, mas foi se criando uma oposição que inicialmente não era visível, uma reação grande à esquerda.

• Bolsonaro, sob esse ponto de vista, tornou-se voz de uma parte da sociedade que não estava representada?

A democracia brasileira é hoje muito mais complexa e mais rica do que foi no passado recente. PT e PSDB representavam uma cisão da social-democracia com pouca cisão cultural. Só que tem uma parcela da sociedade muito mais profunda que o Bolsonaro expressa, e que estava à espera de um porta-voz majoritário. Ele tem, obviamente, capacidade de comunicação. Você junta isso com a falência do sistema político tradicional e dos serviços públicos, e com movimentos de massa surgindo a partir de 2013. E há um processo novo, que é a democracia digital. O cidadão comum tinha pouco peso quando não estava nos sistemas de mediação, como o partido, o sindicato, a própria mídia. Mas a internet o transformou em ator.

• Bolsonaro repete Lula de alguma forma?

São dois personagens que apostam na retórica do nós contra eles. Genericamente, a gente pode chamar de retórica do amigo/inimigo. Na democracia, você tem adversários, não inimigos. Ambos trabalham de maneira distinta com retóricas divisivas, de confronto, excludentes. Lula enfatiza o elemento econômico, com ecos distantes da luta de classes. Bolsonaro introduz um elemento moralizante: é o cidadão de bem contra o marginal e contra a elite política corrompida.

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