Fala-se muito na campanha em fascismo e bolivarianismo, mas se o segundo expressa um objetivo explícito da política petista (vide “#EleNão! ou #ElesNão!”) – não obstante sua eludição tática por Haddad neste segundo turno –, o primeiro diz algo de potencial sobre o candidato mais bem cotado ou como ele pode vir a se tornar realidade a depender da marcha dos acontecimentos, se vitorioso for.
Olhando-se para a frente de direita que se formou em torno de Bolsonaro no rastro da crise do impeachment, vê-se um amálgama de convicções conservadoras cristãs e liberistas associadas ao antipetismo, ao par de um desenvolvimentismo lastreado no positivismo, ideologia basilar do Exército Brasileiro. Em condições normais de temperatura e pressão, não obstante o currículo e a vontade do Capitão, o novo governo teria, para ter sucesso, que se desenrolar dentro da normalidade democrática, e, para tal, contaria com grande respaldo social, popular e empresarial, e perspectiva de governabilidade no Congresso, não obstante a sombra neopatrimonialista da bancada do Centrão.
Ocorre, porém, que a falência do sistema político e a crise estrutural do modelo liberal-rentista de democratização, a par da elevada temperatura política bafejada pelo PT como tática de sobrevivência ao Petrolão, conspiram contra essa normalidade, junto com a falta de concatenação programática da frente bolsonarista e a perspectiva bolivariana da “resistência ao fascismo” – ambas podendo suscitar movimentos violentos na sociedade.^
Para tornar mais sombrio o quadro, enquanto na fase lulopetista foi possível “distribuir" os ganhos econômicos com a exuberância comercial do protagonismo chinês e da bolha ocidental – desperdiçando as chances de um “salto à frente”, em termos produtivos, com uma inclusão social pelo trabalho/aprendizado –, na fase bolsonarista o Brasil estará obrigado a enfrentar seus velhos e novos problemas e dificuldades, o que exigirá sacrifícios até aqui não admitidos pelos grupos dominantes – inclusive os aninhados nas altas esferas do Estado e nas corporações financeiras.
É certo, por outro lado, que algo se pode fazer na frente econômica com resultados positivos no curto-prazo para o governo – dois anos talvez –, seja simplificando os procedimentos normativos arrecadatórios, abrindo novas possibilidades de comércio com os países ricos, sustentando um câmbio de maiores possibilidades comerciais para a indústria e mesmo surfar na esperada onda da retomada econômica adiada pelo naufrágio precoce do Governo Temer. Ocorre que tal agenda, sem tocar nos problemas estruturais de longo-prazo da economia, pode propiciar apenas um fôlego, um novo vôo de galinha dentre tantos já vistos desde a recessão dos anos 1980.
No médio e longo-prazos, os gargalos estruturais tenderão a amplificar as fraturas existentes no seio da coalizão de direita, que, uma vez no governo, se transformará numa coalizão mais ampla, incluindo o liberalismo pragmático e mesmo o neopatrimonialismo, derrotado em sua dúplice aliança com o PSDB e o PT. Neste caso em especial, as perdas vitais dos segmentos neopatrimoniais, impostas pelos fatos, tenderá a afastá-los do governo na perspectiva de voltarem ao poder numa aliança com o lulopetismo que, para ser viável, teria que ser precedida de uma nova maquiagem moderadora dos “companheiros".
Bolsonaro se mantém à proa da disputa flertando com uma ruptura com o sistema – como ficou claro em seu último pronunciamento às manifestações verde-amarelo –, mas parece fadado, por suas alianças liberais e a correlação de forças no interior do aparato militar, a, por enquanto, inaugurar apenas uma ruptura com o mecanismo (neopatrimonial) – o que não é pouco, nem fácil! –, o que significaria, de fato, uma troca na direção do bloco histórico em crise, responsável pela transição democrática desde 1985, e cuja hegemonia é detida pelo capital financeiro, que conheceu, até aqui, dois formatos: o liberal-patrimonialista de Sarney&Collor e o social-patrimonialista de LILS, com um híbrido em Itamar&FHC.
A nova direção liberal-conservadora sobre o velho pacto democrático teria como objetivo pôr ordem no modelo, revertendo a bagunça deixada por Mantega&cia e, de quebra, despejando as oligarquias neopatrimoniais do poder, abrindo assim espaços para maior racionalização do Estado e ajudando a reverter as expectativas negativas sobre o país, recompondo o ambiente propício ao crescimento e à retomada do emprego.
Operar tal mudança, necessária mas não suficiente para nos recolocar na rota do desenvolvimento, além do custo político elevado, pode não surtir os efeitos esperados pela população, o que a levaria ao desencanto e consequente fortalecimento da oposição, o que poderia animar os bolsonaristas, apoiados no setor desenvolvimentista de sua coalizão, a uma tournant no sentido de um novo bloco histórico, o que exigiria um programa econômico voltado para a produção e não simplesmente para o consumo, deslocando o sistema financeiro global de seu papel atual de fiador principal de nossa estabilidade macroeconômica e política.
A hipotética viragem, a depender do contexto político em que ocorra e do álibi que o lulopetismo poderá lhe fornecer, no curto-prazo, provocaria forte inquietação nos mercados e, por consequência, abalaria a frente governativa de centro-direita, podendo levar, inclusive, à suspensão das garantias constitucionais (estado de sítio) ou até mesmo a medidas mais graves no caso da ausência de consenso no Estado de como lidar com a crise.
Paradoxalmente, a previsível resistência petista ao “fascismo" pode render bons frutos à nova política, quer em termos do isolamento das oposições na sociedade, quer do alinhamento defensivo do Estado contra a ameaça de caos que ela pode encerrar, abrindo espaços para uma uma reforma política conservadora, inclusive com mudanças constitucionais para restringir o pluralismo político e aumentar a estabilidade governamental (voto distrital puro).
No caso de não se conseguir produzir tal consenso no âmbito do Estado, o prolongamento do cenário caótico, em meio a conflitos de rua entre esquerda e direita, pode assistir ao aparecimento de milícias paramilitares em ambos os extremos, abrindo espaços para a emergência de um inédito movimento fascista no país – cujos braços armados, diga-se de passagem, já se encontram virtualmente constituídos, embora ainda não plenamente politizados.
Neste cenário sombrio (hipotético), tal como na eleição em curso, nos fará falta uma terceira via capaz de suplantar o petismo e impedir, de novo, a vitória da extrema-direita. O problema aqui é que a desorientação da centro-esquerda é ainda mais forte que as perdas parlamentares sofridas pelo PSDB, PPS e Rede, ao fim do primeiro turno das eleições, o que compromete seu protagonismo na oposição – qualquer que seja o resultado do segundo turno.
O antídoto ao perigo que se insinua está numa frente política capaz de enfrentar o virtual desafio do novo bloco histórico autoritário, de extrema-direita, colocando, à semelhança deste, o foco da inclusão na retomada da produção industrial como resposta ao esgotamento da fórmula financista, baseada em consumo e endividamento das famílias, ao mesmo tempo que procura restaurar a governabilidade e preservar a democracia por meio de uma reforma política que racionalize o sistema partidário (representação) por meio de um modelo eleitoral misto, com listas pré-ordenadas, e medidas punitivas efetivas aos partidos cujos representantes se envolvam em crimes tipificados contra o bem público.
Seja como for, é chegada a hora de se enfrentar a crise política e econômica que o oportunismo político e a incompetência intelectual,varreram, desde 1988, para debaixo do tapete.
Não está escrito nas estrelas que o bolsonarismo derivará em fascismo – isto não faz parte da nossa tradição republicana e para tal existem freios conhecidos, embora não infalíveis –, mas é certo que entre as variáveis propícias para tal está a natureza da oposição que se fará ao (provável) novo governo, e, nela, Ciro Gomes se constitui numa esperança de solução democrática. Torçamos para que ele se coloque à altura da tarefa, nesta fase delicada de nossa vida republicana.
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Hamilton Garcia de Lima (Cientista Político, UENF )
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