Após dois anos e meio de discussões, a reforma da previdência entra em sua fase decisiva. O relator Samuel Moreira (PSDB-SP) deve antecipar um pouco seu parecer final, que era esperado para 15 de junho, depois de peneirar 277 emendas, que mudam tudo e têm poder para abater bastante o R$ 1,236 trilhão da economia prevista pelo governo - que mira obter pelo menos R$ 1 trilhão. A reforma que estava para ser votada no governo anterior, de Michel Temer, foi desidratada pela metade pelo Congresso, proporcionava corte de um pouco menos de R$ 500 bilhões, mas foi atropelada pela crise política trazida pelos diálogos noturnos entre Temer e o dono da JBS, Joesley Batista.
Há 35 emendas que ferem o centro da reforma - as regras de transição, a idade mínima e as formas de cálculo dos benefícios. Além delas, mais de uma centena modificam as propostas para a previdência dos servidores públicos. Uma boa parte dessas emendas procura contemplar categorias em busca do abrigo concedido aos policiais federais, a aposentadoria aos 55 anos. Não é pouca gente: peritos, guardas municipais, agentes penitenciários e até agentes da Abin, a agência de inteligência federal, etc.
As lideranças do Congresso estão dispostas dessa vez a levar a reforma à votação, embora o seu formato final dependa até a última hora do comportamento do presidente Jair Bolsonaro nesse período decisivo. Bolsonaro tem fustigado o Centrão, a geleia de siglas capaz de aglutinar 200 deputados na Câmara, sem poupar até mesmo aliados incondicionais na questão, como o deputado Rodrigo Maia, presidente da Casa.
Se Temer não conseguiu levar para a frente a reforma porque seu capital político foi à lona no escândalo, Bolsonaro tem melhores condições de conclui-la com sucesso, ainda que suas chances de obter tudo o que pretende pareçam menores agora do que quando sentou na cadeira de presidente. Seu passado antirreformista e suas declarações contraditórias sobre o tema poderão lhe custar alguns bilhões a menos na PEC enviada ao Congresso. Se o Congresso reflete em parte a opinião pública, hoje mais inclinada à reforma do que há dois anos, ele tenderá a reduzir com comedimento a potência da reforma. Investidores dão como quase certa a aprovação de uma economia robusta, de pelo menos R$ 800 bilhões. Mas é difícil estimar o preço que o descontentamento dos parlamentares com o relacionamento hostil que lhes reserva o Planalto cobrará das metas oficiais pretendidas com as mudanças.
Por oportunismo e politicagem, alguns governadores lançaram uma sombra sobre a reforma. Querem que Estados e municípios fiquem fora dela, no que contam com apoio discreto de parte dos deputados. Contabilmente, não há a menor dúvida de que os benefícios da inclusão de seus sistemas previdenciários serão enormes, mesmo para Estados sob comando de partidos que se opõem a Bolsonaro. Os déficits previdenciários estaduais rondam R$ 90 bilhões, pouco abaixo dos R$ 92,5 bilhões do regime de servidores da União, mas cresce com muito maior velocidade do que ele. O rombo autuarial conjunto atinge R$ 5,18 trilhões, 74% do PIB de 2019.
Governadores temem o ônus político de encaminhar a reforma às Assembleias, e os deputados temem o mesmo desgaste, ao assumirem missão que facilitará a vida dos Executivos estaduais. O verdadeiro ônus recai de fato sobre a população, que assiste à piora dos serviços públicos enquanto governadores e prefeitos gastam cada vez mais dinheiro com aposentadorias e pensões que são muito superiores às de quem lhes paga o benefício. Estudo do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre/FGV) mostrou que, para cada 100 funcionários ativos, os Estados tinham 88 inativos ou aposentados em 2017. Rio Grande do Sul, em situação crítica, tem mais aposentados e pensionistas que ativos.
Não faz sentido deixar os governadores de fora se eles têm nas mãos um problema previdenciário que é tão explosivo como o da União e que terá no final de ser resolvido pelo Tesouro, nos casos de ruína financeira dos Estados, que têm sido frequentes. Os governadores já foram beneficiados por várias renegociações de dívida, ganharam outras opções de ajuste com o "Plano Mansueto", encaminhado ao Congresso, e ontem a Câmara dobrou para R$ 30 bilhões a fatia que a eles será destinada como resultado do leilão dos excedentes do pré-sal. É politicamente irresponsável restringir a reforma previdenciária à União.
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