- Valor Econômico
Ataque rasteiro a diretor do Inpe ilustra que Brasil invadiu a pista contrária ao processo civilizador
Só lunáticos ainda não concluíram que o Brasil invadiu a pista contrária ao processo civilizador. Se faltasse algum fato para confirmar tão trágica constatação, ele veio com tudo há dez dias: o titular do Ministério da Ciência e Tecnologia teve o topete de fazer rasteiro ataque ao professor titular do Instituto de Física da USP e membro da Academia Brasileira de Ciências - Ricardo Magnus Osório Galvão - desde setembro de 2016 na missão de dirigir o Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais).
O ministro capaz de tamanha afronta é um arrivista que nem currículo Lattes tem e se apresenta como palestrante motivacional, coach em desempenho pessoal e profissional, consultor técnico em segurança e diretor de obscura agência de turismo de aventuras.
Não seria preciso mais do que o parágrafo acima para concluir que inegavelmente se chegou ao fim da picada. No entanto, o endosso do engenheiro Marcos Pontes à insânia de seu chefe, o presidente Jair Bolsonaro, também cria uma ótima ocasião para que se chame a atenção dos leitores do Valor para um exemplo do que acontece em nações que, aos trancos e barrancos, conseguem permanecer na pista certa do processo civilizador.
Em agosto de 2015, a direção da multinacional Coca-Cola deve ter se achado em pleno inferno astral quando seríssimo dano a sua reputação foi causado pela visibilidade de promíscua relação com uma rede de pesquisas sem fins lucrativos, que pretendia minimizar o papel do açúcar como causa da epidemia de obesidade. Essa rede, chamada GEBN (Global Energy Balance Network) fez de tudo para promover a tese de que o vilão da desgraça seria a falta de exercícios físicos.
Denúncias dos jornais New York Times e do Guardian de que se tratava de uma organização "astroturfing" (manobra de mascarar quem são os patrocinadores ou fontes de financiamento) tiveram drásticas consequências nos meses seguintes. Em novembro, a GEBN foi dissolvida e o cientista-chefe da Coca-Cola, demitido. Em agosto de 2016, dois pesquisadores envolvidos na operação foram punidos por suas respectivas universidades (West Virginia e South Caroline). Logo depois, foi divulgada pelo website da multinacional uma longa lista de cientistas que receberam recursos da empresa entre 2010 e 2017, precedida de novos "princípios de conduta".
Será que tais princípios vêm sendo respeitados? Uma boa resposta foi publicada no Journal of Public Health Policy, do último 8 de maio, por equipe liderada pela doutora Sarah Louise Steele, do departamento de política e estudos internacionais da Universidade de Cambridge: www.drsarahsteele.com/ Trabalho que contou com a inestimável participação de Gary Ruskin, um dos fundadores do grupo de pesquisas em saúde pública United States Right to Know (USRTK): usrtk.org/
Baseado em Oakland, Califórnia, o grupo tem sido incansável na investigação dos procedimentos das indústrias alimentares e agroquímicas, não apenas nos EUA, mas também na Austrália, Canadá, Dinamarca e Grã-Bretanha. Deve-se ao empenho do USRTK os chamados "Monsanto Papers", documentos que estão levando os tribunais a condenar a Bayer a indenizar algumas das vítimas do praguicida Glifosato.
O estudo que avaliou as condições do financiamento comercial de pesquisas pela Coca-Cola mostra que seu comportamento pode até ter melhorado nos últimos três anos, mas ainda está longe de poder ser considerado confiável ou exemplar. A tal ponto que - já no título do artigo - os autores aconselham pesquisadores que venham a se envolver com a empresa a lerem seus contratos com a máxima atenção, especialmente os trechos que só aparecem em letras miúdas: "Always read the small print".
Na conclusão, a equipe orientada pela doutora Steele dirige solicitações a três atores-chave. Aos periódicos científicos, que sejam amplas, gerais e irrestritas as informações sobre o financiamento corporativo das pesquisas que relatam. Em vez de curtas menções de agradecimentos aos financiadores, afirmam ser necessário fornecer os links de acesso eletrônico à integralidade dos acordos e contratos firmados pelos autores com as empresas.
Aos médicos e outros profissionais de saúde, chama a atenção para a premência de que pressionem seus colegas e os periódicos para que ajam na direção de completa transparência.
E, às empresas - com especial destaque à própria Coca-Cola - exige que essa transparência abranja também estudos interrompidos sem divulgação de resultados, pois muitas dessas investigações incluem informações críticas para a saúde. "Por isso, pedimos aos financiadores da indústria que publiquem listas completas de estudos suspensos como parte de seu compromisso de agir com integridade".
Em suma: enquanto pesquisadores europeus e americanos se preocupam com normas éticas dos financiamentos privados de pesquisas científicas, os daqui fazem lembrar o personagem Canio da ópera "Palhaço" (1892), pois só assim nos vestindo e nos maquiando conseguimos tocar em frente: "Vesti la giubba e la faccia enfarina".
*José Eli da Veiga, professor sênior da Universidade de São Paulo (USP)
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