Por Cyro Andrade | Eu & Fim de Semana / Valor Econômico
O viés ideológico influencia ideias e julgamentos de economistas, sejam ortodoxos ou heterodoxos
SÃO PAULO - Economistas da ala de pensamento hoje dominante em seu meio profissional, dentro e fora da academia, tendem a se considerar os campeões da racionalidade. Sua concepção estritamente positivista da disciplina, de inspiração chamada neoclássica, os distinguiria de qualquer outro paradigma econômico: são objetivos, imparciais e nem um pouco ideológicos - atributos com que emolduram sua inabalável ortodoxia.
No entanto, como comprovaram em investigação empírica inédita os economistas Mohsen Javdani, professor na Universidade de British Columbia, no Canadá, e Ha-Joon Chang, da Universidade de Cambridge, na Inglaterra, não faltam evidências de que o viés ideológico, entendido como inclinação preconcebida para determinadas valorações cognitivas e normativas, influencia ideias e julgamentos dos economistas, indistintamente, sejam ortodoxos ou heterodoxos.
Convidados para participar do estudo, opinaram 2.425 economistas de 19 países (47 brasileiros), sendo 92% PhDs em economia. O artigo que Javdani e Chang escreveram a respeito “Who Said or What Said? Estimating Ideological Bias in Views Among Economists”, com detalhada exposição metodológica, pode ser lido em www.bit.ly/2klWPqQ.
Todos os participantes receberam um mesmo conjunto de 15 citações atribuídas (cada uma) a um economista “mainstream”, a um outro, menos/não “mainstream”, ou sem atribuição de fonte (ver quadro). As citações tratavam de diferentes elementos do paradigma econômico “mainstream” - incluindo metodologia, pressupostos e a sociologia da profissão - ou questões relativas a política econômica. A atribuição das fontes foi aleatoriamente alterada, sem o conhecimento dos participantes.
“Baseados em nossa experiência e visão geral da disciplina, esperávamos encontrar algum viés ideológico, mas não em grau tão elevado”, disse Chang ao Valor. Ele destaca estas revelações:
O nítido contraste entre a afirmação (constante do relato de 82% dos participantes) de que uma citação deve ser considerada apenas pelo conteúdo (seja qual for a autoria) e suas respostas na pesquisa, de sentido exatamente oposto (a mudança da atribuição de autoria de fontes “mainstream” para outras menos/não “mainstream” reduz significativamente a proporção dos que concordam com o teor das citações);
A forte influência da orientação política sobre a inclinação ideológica na profissão, crescente à medida que a identificação pessoal (declarada pelo participante) mais avança para a direita.
Outros resultados reveladores:
O viés ideológico é mais forte entre economistas “mainstream” do que entre heterodoxos;
Macroeconomistas apresentam mais forte tendência para o enviesamento;
Economistas cuja principal área de pesquisa é a macroeconomia, a economia pública, a economia internacional e a economia financeira estão entre aqueles com maior viés ideológico.
Mais supreendentes, contudo, disse Chang, foram as reações “hostis e não profissionais” à questão central da pesquisa (e, depois ao “paper” resultante), ou seja, o grau em que economistas se deixam influenciar por viés ideológico. Alguns dos economistas ouvidos, incluindo nomes preeminentes na profissão, “mostraram-se particularmente abusivos, chegando mesmo a fazer ameaças pessoais”.
A maioria dos principais “journals” a que o artigo foi submetido reagiu com “avaliações não profissionais e tendenciosas”, com a exceção de “um ou dois que nos trataram de modo adequado e até enviaram relatórios finais de avaliação”. Em um caso, a avaliação veio do próprio editor, mas os demais chegaram a recusar-se a encaminhar o artigo a revisores e o rejeitaram “por motivos que mais pareciam simples desculpas - algumas realmente bizarras”.
Em seu trabalho, Javdani e Chang não pretenderam investigar diretamente a credibilidade de diferentes argumentos sobre a influência de viés ideológico na economia. Em vez disso, optaram por uma aproximação “agnóstica” desse debate, revelador de “alarmantes sinais, que invocam importantes questões, a serem examinadas em futuras investigações”.
Acreditam, de toda forma, que a confirmação da existência de viés ideológico entre economistas tem relevantes implicações intelectuais, tanto teóricas como práticas.
Teoricamente, entendem que isso os ajudará a investigar, mais adiante, até que ponto os argumentos teóricos por trás da metodologia positivista da economia neoclássica são consistentes com evidências empíricas. Em termos de implicações práticas, consideram desde já suficientes as “crescentes evidências”, identificadas por vários autores, de que julgamentos de valor e orientação política dos economistas afetam diferentes aspectos de sua vida acadêmica, incluindo as pesquisas que fazem, as redes de citações, a contratação pelas faculdades, assim como suas posições a respeito de questões positivas e normativas relacionadas tanto a políticas públicas como a metodologias.
A principal fonte de viés ideológico está no conhecimento influenciado pelas instituições que produzem discursos, observam Javdani e Chang em artigo que escreveram para apresentar seu estudo no site do Institute for New Economic Thinking (“Ideology is Dead! Long Live Ideology!”). E a economia “mainstream” funcionaria como a “instituição dominante e mais influente, propagando e moldando pontos de vista ideológicos entre os economistas através de diferentes canais, já nos cursos de formação”.
Num mundo caracterizado por questões críticas sobre as quais a economia tem muito a dizer, como desigualdade, austeridade, futuro do trabalho e mudanças climáticas, dizem ainda “confiar num discurso dominante que ignora ou isola visões alternativas tornará a profissão [do economista] mal equipada para se envolver em discussões equilibradas sobre essas questões” - além do que “torna os consumidores de ideias econômicas céticos em relação aos economistas e às opiniões e políticas que defendem”.
José Luís Oreiro, professor na Universidade de Brasília, pesquisador do CNPq e líder do grupo de pesquisa Macroeconomia Estruturalista do Desenvolvimento, consente, de partida, que “somos todos ideológicos”.
Parece-lhe claro que “nenhum pesquisador, ainda mais no campo das ciências sociais, como é o caso da economia”, pode ser ideologicamente neutro. Mas também é verdade, observa, que não existem verdades absolutas na ciência, muito menos nas ciências sociais. Daí a relevância, a seu ver, do pluralismo de pensamento e da permanente disposição para o debate, para além da barragem levantada por efeito da dominância do pensamento “mainstream”. “O pluralismo deve ser visto com naturalidade, resultado normal da operação do método científico num contexto em que a resolução de controvérsias é imperfeita, quando não impossível”, diz.
Simão Silber, professor da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo, estende o olhar sobre a história: “Desde 1748, com David Hume, temos 270 anos de evolução das teorias e das práticas econômicas: toda teoria científica tem que passar por testes empíricos, não fica enclausurada em dogmas. Portanto, a boa teoria é aquela que vai sobrevivendo ou sucumbe aos testes empíricos”.
Não há colorações definitivas, diz Silber: “Já se acreditou no passado que mercados livres dariam a melhor solução para os problemas econômicos, bem como que o comunismo traria progresso e igualdade para a humanidade. Ledo engano. O mundo real não funcionou assim. Terminamos em um mundo onde coexistem mercados e governos, de uma forma muito imperfeita, mas evolucionária”.
Em geral, as teorias têm se alterado para enfrentar novas questões que não estavam no radar em passado recente. As políticas micro e macroeconômicas também se modificam. Silber traz os exemplos da volta da preocupação com a estagnação secular nos países desenvolvidos e as taxas de juros nominais negativas. Também menciona “a enorme discussão para o papel adequado da política fiscal e monetária em um novo contexto”. E conclui: “Não existe e talvez nunca existirá ‘teoria econômica geral unificada’, como na física não existe teoria geral que una a relatividade com a mecânica quântica”.
O economista José Roberto Afonso, professor de mestrado na Escola de Direito de Brasília, diz que nunca se preocupou em alinhar-se a uma corrente de pensamento econômico, e muito menos em segui-la fielmente, em qualquer circunstância. “Pela principal razão de que as circunstâncias mudam ao longo do tempo, e isso exige muitas vezes um reposicionamento de pensamento e de atuação”. Esse posicionamento de imparcialidade o associa intelectualmente a John Maynard Keynes, que, “bem ao contrário do que os keynesianos pensam, ensinou a mudar de avaliação e de política na medida em que as condições econômicas e sociais mudavam”.
Em outras palavras, ideologias podem ser transitórias. De novo idealmente falando, deveriam ser transitórias. Mas nem sempre essa mutabilidade se integra naturalmente às retóricas e práticas políticas. “Crenças e valores existem em qualquer profissão e lugar do mundo - e em virtude disto se elegem ou descartam determinadas políticas públicas”, diz o cientista político Carlos Mello, professor no Insper. Contudo, “não raro, no poder, essas crenças se calcificam e derivam para o dogmatismo, e daí para o autoritarismo. Isto ocorre à esquerda e à direita, e talvez não exista tema mais exemplar do que a discussão em torno da privatização vis-à-vis a estatização de setores e empresas”.
A forma mais elementar de fugir desse dilema, observa Mello, seria adotar um método de reflexão e de decisão voltado para a reunião e apresentação de evidências, dados, números, efeitos decorrentes de qualquer fenômeno econômico. “Enfim, o amparo da realidade demonstrável.” Um discurso desprovido de evidências “pode derivar para uma retórica baseada em convicções políticas pessoais e autoritárias” - espécie de retórica de conveniência que não raro inclui a simples negação da existência de influência ideológica.
É claro que qualquer governo define seu foco de atuação baseado numa visão de mundo - o que deve e o que não deve ser transformado -, e isso se reflete na sua definição de prioridades, que podem atender a diferentes grupos sociais. “De modo algum, porém, pode-se prescindir da análise da realidade, da coleta e organização de dados, da reunião de evidências e, claro, da consideração da história e da experiência internacional, para que se possa distinguir contextos”, adverte Mello. Se não for assim, “a prática deriva para pura ideologia, que, normalmente, desserve à qualificação das decisões de governo”.
Ao Valor, o cientista político Marco Aurélio Nogueira disse que a ideia de isenção ideológica é ela mesma uma ideologia, “que não só busca subverter um dado da vida - não há ideias e narrativas sem ideologia - como se destina a fixar uma ‘posição de combate’ no terreno político e de ideias, o que não se faz sem postulações ideológicas”. Há pessoas que mostram sofrer de ignorância cognitiva quando negam existir “ideologia” em suas ideias e atos, “mas as mais ativas sabem do que estão falando”.
Existe, por certo, confusão entre ideia e ideologia, e mesmo o conceito de ideologia tem duas dimensões: a de se referir a uma expressão ideal (de ideia) e a de ser uma “distorção da realidade” (a falsificação dos fatos). “Essa confusão teórica acentua a confusão prática, mas o mais importante é salientar que aqueles que se dizem ‘sem ideologia’ são ideólogos. Por baixo do pano, faz-se uma troca: combate-se a ideologia de esquerda para se promover uma ideologia de direita”, afirma Nogueira.
Ideologias, retóricas e atitudes concretas nem sempre se encontram em correlações diretas nos atos e expressões de agentes econômicos ou políticos. Mello está entre os que não creem que a agenda econômica - naquilo que já está efetivado como “política”, discutida e aprovada pelo Congresso Nacional - seja sempre e exatamente fruto da retórica do atual governo. “Muito se tem feito em virtude das terríveis circunstâncias sociais e econômicas. A reforma da Previdência é exemplo disto. Não foi a retórica que a aprovou, na Câmara, mas a consciência de uma realidade de transformações demográficas, aliadas ao colapso fiscal e a distorções e injustiças sociais.”
Outro aspecto a considerar, a seu ver, é que, no momento de se apresentar e aprovar medidas no Parlamento, a realidade e o conflito de interesses entre os mais diversos setores - barganhas políticas, inclusive - falam sempre mais alto. Mello explica assim: “Uma política conduzida e hegemonizada por setores de centro, uns mais, outros menos fisiológicos - como é o caso do Brasil, neste momento - é sempre pragmática e se sensibiliza muito pouco por idealismos ou retóricas principistas. Mesmo que [grupos] se sirvam dessas retóricas para viabilizar seus interesses”.
Todo governo faz uso de ideologias para justificar ou explicar, retoricamente, diretrizes e decisões de políticas públicas. Para Nogueira, o que chama atenção no Brasil é que a ideologia econômica prevalecente, ultraliberal, não encontra conexão harmoniosa com a retórica política governamental, mas, ao contrário, só obtém ressonância na Câmara dos Deputados e entre formadores de opinião externos ao governo. “É uma dissonância que só se sustenta porque a ideologia econômica tem apoios no mercado, nas finanças e em muitos setores da sociedade.”
No limite, imagina Nogueira, isso poderia levar a um isolamento da retórica reacionária do presidente Jair Bolsonaro (PSL), ou à sua conversão em algo caricatural. “Uma transformação, nesse caso, ocorreria sem que o pacto social se inclinasse para a direita em termos de costumes ou de retrocesso político explícito. O Brasil se tornaria uma sociedade fortemente de mercado, com pouca proteção social e pouca regulamentação, um paraíso para o capital financeiro, sem que prevalecesse a mentalidade regressista em termos morais ou a ditadura política.”
Nesse entrecruzar de forças ideológicas, considera Nogueira, “o eventual sucesso da agenda econômica de Paulo Guedes [ministro da Economia] não implicará necessariamente o sucesso da agenda moral do governo”. Na verdade, “a ideologia econômica é mais forte do que a ‘ideologia ideológica’, moralizante e reacionária, fazendo com que esta última funcione como uma cortina de fumaça”. A consequência é que, “enquanto todos se preocupam com os desatinos presidenciais e de seu clã, o ultraliberalismo vai penetrando os poros da sociedade, impondo-se silenciosamente”.
Um comentário:
good job! tanks to Javdani and Hajoon research findings as well as Cyro Andrade article which reveal clearly the need for "new alternative knowledge" generation and "new approaches" implication specialy in economics that nowadays determine unfortunately, under main stream approach the most of human issues
Postar um comentário