Ruído na política é um dos agentes mais corrosivos da democracia
- Folha de S. Paulo
Mês após mês, diferentes áreas do atual governo deram demonstração de falta de traquejo para lidar com a democracia e flertaram com o autoritarismo. A sociedade reagiu nas redes sociais. Representantes dos demais Poderes se manifestaram. Mas o setor empresarial e o mercado financeiro não se abalaram.
Mês após mês, a cada polêmica, o reflexo na Bolsa e no dólar foi zero.
O argumento recorrente para esse comportamento é que a entidade batizada de mercado financeiro, que reúne bancos e corretoras, é amoral e apolítica. Sua única preocupação é garantir o retorno dos investimentos de seus clientes, e só há reação quando esse retorno é ameaçado. Se a área econômica do governo é bem gerida, não importa o resto.
Não importa se há aumento de queimadas na Amazônia. Não importam denúncias de corrupção num governo que se elegeu como paladino da Justiça. Não importam manifestações oficiais falando sobre a volta do regime de exceção de um AI-5. Não importa o revisionismo da história para trocar golpe por revolução. Não importa o movimento evangélico na gestão pública para banir personagens místicos dos livros infantis.
Não importa se um vídeo oficial do Ministério da Cultura, recomendado pelo presidente em sua live semanal, seja uma paródia da estética nazista.
Há três problemas nesses argumentos.
Primeiro, não há economia pujante sem democracia sadia. E a democracia é um organismo vivo no qual tudo está interligado. Se um dos elementos capengar, o restante fica contaminado e degringola —mais cedo ou mais tarde. E o ruído na política é um dos agentes mais corrosivos da democracia. Não faltam exemplos na história, tanto à esquerda quanto à direita do espectro político.
Para ficar em dois casos recentes. Na Turquia, a crise financeira começou com a prisão de um pastor americano acusado de se envolver em uma tentativa de golpe contra o governo de Erdogan. Na Venezuela, a insistência do chavismo em se agarrar ao poder conseguiu destruir até a indústria local de petróleo, apesar de ela ser uma das mais importantes do mundo.
Segundo, não é verdade que a gestão da economia brasileira esteja blindada do resto do governo —e o mercado financeiro tem feito vista grossa.
A indústria global de fundos, representada por 230 gestoras, que administram US$ 16 trilhões, emitiu carta de protesto contra as queimadas e a aparente letargia do governo brasileiro em relação à questão. O mercado ignorou.
A reforma administrativa está descansando numa gaveta porque a ala política do governo não quer mais reformas, que qualifica de amargas e ameaçadoras para as ambições eleitorais de apoiadores. O mercado ignorou.
O presidente em pessoa interferiu na agência que regula o setor de energia no momento em que estava em discussão, de forma transparente, a revisão do pagamento da energia solar. O mercado ignorou.
Terceiro, ao tratar como polêmica menor um número crescente de controvérsias nos campos sociais, culturais e ambientais, o mercado está sendo mais passional do que técnico, pois não é segredo que apoiou a eleição de Bolsonaro.
Pode deixar de precificar adequadamente os riscos para milhões de investidores brasileiros, boa parte deles pequenos poupadores que buscam resultados melhores em produtos mais arriscados, já que a queda dos juros tirou retorno de produtos clássicos e mais seguros, como títulos públicos.
Ao ignorar a indignação generalizada com o tom nazista do pronunciamento do já ex-secretário da Cultura, o mercado sinalizou o pior: que, se a economia ficar de boa, opera até contra a democracia.
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