- Valor Econômico
No início do que promete ser a mais grave crise do capitalismo em 85 anos não é a melhor hora de vender reservas
O combate à pandemia tem requerido enormes gastos fiscais. O déficit primário (que exclui juros), pode chegar este ano a R$ 600 bilhões. Com o acúmulo de déficits e com a queda do PIB, a dívida pública pode ser catapultada a cerca de 100% do PIB. Não haveria uma solução mais fácil?
Uma sugestão frequentemente aventada é o uso das reservas cambiais, hoje em cerca de US$ 340 bilhões (quase R$ 1,8 trilhão). Seria boa ideia vender parte das reservas internacionais para financiar o combate à pandemia?
A função primordial das reservas cambiais é garantir a capacidade de importar em tempos de falta de crédito internacional. No início da década de 80, o general Figueiredo teve que ligar para Ronald Reagan para evitar que, por falta de insumos básicos, como petróleo, a economia ficasse paralisada. Reservas internacionais previnem tais riscos.
Hoje em dia, a função mais importante das reservas é garantir o bom funcionamento dos mercados cambiais e do mercado financeiro. Reservas têm sido usadas para intervenções no mercado cambial, quando falta liquidez, como tem acontecido recentemente. Desde o início da crise, o BC já vendeu cerca de US$ 14 bilhões das reservas, bem como emprestou outros US$ 7,3 bilhões, em linhas de financiamento (repos), além de ter ofertado swaps cambiais adicionais no valor de US$ 12 bilhões.
As reservas são ativos do BC e, em última análise, do governo. Não surpreende, portanto, que, com frequência, sejam vistas como fontes de recursos para financiar gastos. Mas há aí um problema. Como os gastos públicos, em geral, são feitos em reais, haveria que converter as reservas no mercado cambial antes de gastá-las. Vendas tão vultosas de dólares levariam à apreciação cambial (dólar mais barato), o que nem sempre é desejável, ainda que não constitua problema hoje, dada a já elevada depreciação do real.
As reservas vendidas pelo BC são pagas com reais, que são recolhidos ao BC, reduzindo a quantidade de moeda em circulação. Quando a quantidade de moeda se reduz, a taxa de juros (Selic) se eleva. Para evitar que a taxa Selic supere em muito a meta fixada pelo Copom (hoje em 3,75%), o BC tem que comprar títulos públicos (na realidade, desfazer operações compromissadas), trocando-os por moeda, assim restabelecendo a liquidez compatível com a meta da taxa Selic. Ou seja, manter a Selic na meta fixada requer que o BC esterilize os efeitos das operações cambiais sobre o mercado monetário.
A venda de reservas cambiais promove uma mudança na composição dos ativos do setor privado: menos títulos do governo e mais dólares. Já do ponto de vista do balanço do setor público, ocorre o oposto: cancela-se parte da dívida pública interna e diminuem as reservas. A venda de reservas, portanto, compete com a emissão de dívida que seria necessária para financiar gastos públicos.
O grande inconveniente de reduzir as reservas cambiais neste momento é que, como já exposto, as reservas funcionam como um seguro contra crises. E, neste momento, estamos apenas no início do que promete ser a mais grave crise do capitalismo nos últimos 85 anos. Não é a melhor hora para o país se desfazer de seguro. É preferível deixar a dívida crescer e, quando a crise passar, discutir como reduzir aos poucos a dívida acumulada.
São basicamente três as formas de reduzir a dívida: aumentar impostos, reduzir gastos públicos e vender ativos públicos, como empresas públicas (privatização), imóveis e, claro, reservas cambiais. Mas é questão para ser discutida quando a crise passar. Se os juros permanecerem tão baixos como estão será mais fácil lidar com o aumento de endividamento. O melhor, portanto, é deixar que as reservas sigam sendo usadas pelo BC de acordo com as necessidades de intervenção no mercado cambial. É bem provável que as reservas continuem a ser reduzidas durante a crise, mas não por terem sido utilizadas para financiar o aumento de gasto público requerido pelo combate à pandemia.
Uma outra sugestão frequentemente encontrada é a de financiar gastos extraordinários com emissão monetária. Em artigo com Marcos Mendes (www.econ.puc-rio.br/uploads/adm/trabalhos/files/200406_Monetizacao_v04.pdf)
A situação atual é semelhante a uma guerra ou a um desastre natural de proporções gigantescas. Em tais situações, gasta-se o que tem que ser gasto, aumentando fortemente a dívida pública. O importante é ter em mente que, quando a emergência acabar, o país terá de lidar com o peso do endividamento adicional do setor público. Daí a importância de se manter dispositivos de limitação de aumento permanente de gastos, como o teto dos gastos, para garantir tal disciplina após a atual crise. O teto de gastos não limita os gastos contra a atual crise, como foi erradamente dito por muitos.
Em suma, podemos até usar as reservas para financiar gastos, mas isso não é necessário, nem prudente, nesta hora. O governo terá de se endividar ainda mais para financiar os gastos para combater a crise. Mas é importante evitar que os maiores gastos indispensáveis ao combate contra a pandemia se tornem permanentes. E que venham a minar o arcabouço duramente construído para evitar uma trajetória explosiva do endividamento público.
*Márcio G. P. Garcia, Ph.D. por Stanford, professor titular do Departamento de Economia da PUC-Rio, Cátedra Vinci Partners,
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