- O Estado de S.Paulo
Mortos não votam. Resta a
Bolsonaro cultivar a gratidão dos eleitores vivos
“Vamos tocar a vida e
buscar uma maneira de se safar desse problema”, disse o presidente Jair
Bolsonaro, depois de mencionar as quase 100 mil mortes confirmadas até a noite
de quinta-feira. Além de agredir o idioma com aquele pronome “se”, ele voltou a
exibir uma caixinha de cloroquina e culpou governadores e prefeitos pelo
aumento do desemprego. Não especulou sobre quantas pessoas mais teriam morrido
se tivesse havido menor empenho no distanciamento social. Disse lamentar as
mortes e talvez alguém tenha acreditado nisso. “Tocar a vida”, no caso de
Bolsonaro, significa retomar a atividade sem levar em conta o risco sanitário.
Durante mais de um ano ele havia ignorado o mau estado da economia, deixando o
assunto para seu “posto Ipiranga”. Terá havido uma súbita iluminação, talvez
causada por algum vírus ainda desconhecido?
Cuidar da vida significa também cuidar da reeleição. Mortos são
excluídos do colégio eleitoral, pelo menos quando a lei prevalece. “Não sou
coveiro”, respondeu o presidente ao ser confrontado, numa entrevista, com a
mortandade causada pela pandemia. “Empatia”, palavra muito repetida nos últimos
meses, parece continuar fora do vocabulário presidencial. Não faltou atenção,
no entanto, a negócios e votos.
Políticas emergenciais foram implantadas em dezenas de países, nos
últimos meses, para atenuar os efeitos da pandemia. Centenas de bilhões de
dólares foram rapidamente canalizados no mundo rico para ações de saúde, apoio
às empresas, defesa do emprego e socorro aos pobres. Planos mais modestos foram
adotados nas economias emergentes e em desenvolvimento.
Nem os países mais pobres ficaram sem proteção. O Fundo Monetário
Internacional (FMI) mobilizou cerca de 1 trilhão de dólares para ajuda. Em
pouco tempo foram aprovados desembolsos para cerca de uma centena de países.
Parte desses empréstimos provavelmente nunca será quitada, mas isso é parte do
jogo. Em todos os casos a ajuda foi vinculada a ações de saúde e de sustentação
econômica.
As medidas aplicadas no Brasil são parecidas, em pontos
essenciais, com aquelas encontradas em muitos outros países. De modo geral,
houve estímulos ao crédito e aumento do gasto público. Esse aumento foi
combinado, em alguns casos, com alívio temporário de impostos. Um levantamento
dessas políticas foi divulgado há semanas pela OCDE, a Organização para
Cooperação e Desenvolvimento Econômico.
A maioria das pessoas, no Brasil e provavelmente em muitos outros
países, desconhece esses fatos. Ignora, da mesma forma, o sentido econômico do
auxílio emergencial. Essa ajuda é vital para as famílias, obviamente, mas é
também muito importante para as empresas, pequenas, médias e grandes,
produtoras e distribuidoras de bens essenciais.
A estratégia econômica torna-se interpretável por milhões de
pessoas como ato de bondade. Isso facilita faturar politicamente, como se fosse
um gesto humanitário, um ato explicável pela mais prosaica racionalidade
econômica. Repetido por alguns meses, um auxílio de R$ 600 pode converter-se em
fonte de gratidão e de votos. Erros cometidos no combate à doença – e até
agravados pelo desprezo à vida de milhares – tornam-se irrelevantes ou
invisíveis. Lucra, portanto, quem se ocupa prioritariamente da reeleição em
2022.
Muitos talvez nem tenham percebido os erros e as falhas de
liderança, embora possam ter ocasionado a morte de pessoas próximas. Nos
Estados Unidos e na Europa Ocidental, onde os programas de ajuda emergencial
foram muito amplos, erros no combate à pandemia saíram menos baratos para os
chefes de governo. Serão menos dotados de gratidão os europeus e americanos?
Especialmente notável, no caso brasileiro, é o repentino interesse
do presidente pela economia e pela sorte dos trabalhadores. Esse interesse,
nunca manifestado nos primeiros 14 ou 15 meses de mandato, só apareceu depois
de reconhecida a presença do novo coronavírus.
Em 2019 a economia cresceu 1,1%, menos que em qualquer dos dois
anos anteriores, mas o assunto jamais pareceu preocupar o presidente da
República. No trimestre móvel encerrado em fevereiro os desempregados eram
11,6% da força de trabalho, mais que o dobro da média da OCDE, e a aparente
indiferença permaneceu. Ainda em fevereiro, a produção industrial, embora 0,5%
maior que a do mês anterior, continuou 0,4% inferior à de um ano antes e 16,6%
abaixo do recorde de maio de 2011, no primeiro mandato da presidente Dilma
Rousseff.
A crise industrial vem de longe e se agravou nos últimos oito
anos, mas permanece invisível na agenda presidencial e na da equipe econômica.
Não se resolverá esta crise com a mera redução de encargos sobre a folha de
salários e com a eliminação de direitos trabalhistas, bandeiras do ministro da
Economia. Sem cuidar de temas essenciais para a prosperidade do País, o
presidente, centrado em objetivos pessoais, pressiona pela retomada imediata
dos negócios, mesmo com o risco de mais mortes. Na sua contabilidade, esse deve
ser um preço razoável pela reeleição. O lema é tocar a vida sobre os mortos.
*Jornalista
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