domingo, 9 de agosto de 2020

A construção da cidadania – Editorial | O Estado de S. Paulo

A pluralidade participativa nos processos decisórios não só resulta em serviços públicos mais eficientes, mas em melhores cidadãos

A pandemia intensificou as desigualdades econômicas e recrudescerá as polarizações políticas. Com o tecido social tensionado a ponto de rasgar-se, faz-se como nunca necessário revigorar aquilo que nos une: a cidadania. A concretização deste ideal é tão complexa quanto a sua definição é simples: um Estado Democrático vigoroso é aquele em que todo cidadão se sente satisfeito com sua identidade e se sente capaz de contribuir ativamente para a sociedade.

Nas nações modernas todo indivíduo nasce um cidadão. Mas só alguns se tornam “bons cidadãos”. Fazer com que estes alguns sejam muitos é o desafio de cada geração. Trata-se de excitar em cada um o desejo pelo bem comum e lhe dar o poder para satisfazê-lo; de acender em seu íntimo o fogo da solidariedade de onde emanam a luz e o calor da vida cívica.

Nos últimos três séculos os direitos civis, políticos e sociais se fortaleceram e se expandiram. Mas desde o pós-guerra, enquanto este processo se consumava na consolidação do Estado de Bem-Estar Social, houve paradoxalmente uma bem documentada erosão do “capital social”, ou seja, da constelação de associações interpessoais por meio das quais os indivíduos compartilham valores, compromissos, cooperação e reciprocidade. O desafio no século 21 é reverter esta tendência.

Em 1942, o icônico Relatório Beveridge iniciou a implementação das garantias sociais de todo cidadão britânico “do berço ao túmulo” divisando “cinco gigantes” a serem batidos na “estrada da reconstrução”: miséria, doença, ignorância, insalubridade e desocupação. Agora que o vírus revigorou estes inimigos mortais, é vital construir uma jornada cívica do berço ao túmulo que fortaleça os cidadãos contra os vícios que corroem a cidadania a partir de dentro, como a apatia, o egoísmo, a prepotência, o fanatismo ou a descortesia. 

A base, por óbvio, é a educação. Os currículos contemporâneos, tão pressionados pelas exigências do mercado de trabalho, têm o formidável desafio de integrar um equivalente às “Artes Liberais”, que da Antiguidade à Modernidade formaram os cidadãos “livres”, e resgatar, se não a letra, hoje morta, o espírito da “Educação Moral e Cívica”. Mas ao longo da vida adulta há muitas outras coisas que o Estado pode fazer.

Assim como há um serviço militar obrigatório para uns poucos jovens, poder-se-ia considerar um serviço civil, se não obrigatório, voluntário, mas para muitos. A Inglaterra, por exemplo, está implementando um programa de formação, o Serviço Civil Nacional, para criar nos jovens o hábito vitalício da ação social.

Há incentivos granulares e singelos, mas eficazes. Uma maneira de garantir que voluntários se sintam estimulados é promover premiações e reconhecimentos públicos. Desempregados e aposentados também podem receber incentivos para se engajar em ações sociais. Enquetes com associações civis mostram que um entrave recorrente é a falta de espaço para os encontros. Os setores de RH dos empregadores também podem fazer muito mais para encorajar o engajamento cívico em sua força de trabalho.

A participação política deve ser estimulada muito além do processo eleitoral. A pluralidade participativa nos processos decisórios, que pode ser tremendamente impulsionada pelas novas tecnologias digitais, não só resulta em serviços públicos mais eficientes, mas em melhores cidadãos. As evidências mostram que o engajamento cívico eleva os níveis de tolerância, confiança e reciprocidade na sociedade.

Como se vê, se na construção dos direitos cívicos o papel do Estado é positivo, na construção da responsabilidade cívica ele é negativo – ou, mais exatamente, subsidiário. No primeiro caso, trata-se de erigir estruturas que garantam a inclusão de todos os indivíduos e de alicerces que sustentem a sua dignidade. Já no segundo, trata-se não de formá-los ou conformá-los sob um modelo pré-formatado de cidadania, mas de remover as barreiras que obliteram a sua inclinação natural de “animais políticos” a se engajar em sua comunidade, criando um espaço cívico vibrante no qual as suas associações livremente estabelecidas possam florescer.

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