A pluralidade participativa nos processos decisórios não só resulta em serviços públicos mais eficientes, mas em melhores cidadãos
A pandemia intensificou as desigualdades econômicas e recrudescerá
as polarizações políticas. Com o tecido social tensionado a ponto de rasgar-se,
faz-se como nunca necessário revigorar aquilo que nos une: a cidadania. A concretização
deste ideal é tão complexa quanto a sua definição é simples: um Estado
Democrático vigoroso é aquele em que todo cidadão se sente satisfeito com sua
identidade e se sente capaz de contribuir ativamente para a sociedade.
Nas nações modernas todo indivíduo nasce um cidadão. Mas só alguns
se tornam “bons cidadãos”. Fazer com que estes alguns sejam muitos é o desafio
de cada geração. Trata-se de excitar em cada um o desejo pelo bem comum e lhe
dar o poder para satisfazê-lo; de acender em seu íntimo o fogo da solidariedade
de onde emanam a luz e o calor da vida cívica.
Nos últimos três séculos os direitos civis, políticos e sociais se
fortaleceram e se expandiram. Mas desde o pós-guerra, enquanto este processo se
consumava na consolidação do Estado de Bem-Estar Social, houve paradoxalmente
uma bem documentada erosão do “capital social”, ou seja, da constelação de
associações interpessoais por meio das quais os indivíduos compartilham
valores, compromissos, cooperação e reciprocidade. O desafio no século 21 é
reverter esta tendência.
Em 1942, o icônico Relatório
Beveridge iniciou a implementação das garantias sociais de
todo cidadão britânico “do berço ao túmulo” divisando “cinco gigantes” a serem
batidos na “estrada da reconstrução”: miséria, doença, ignorância,
insalubridade e desocupação. Agora que o vírus revigorou estes inimigos
mortais, é vital construir uma jornada cívica do berço ao túmulo que fortaleça
os cidadãos contra os vícios que corroem a cidadania a partir de dentro, como a
apatia, o egoísmo, a prepotência, o fanatismo ou a descortesia.
A base, por óbvio, é a educação. Os currículos contemporâneos, tão
pressionados pelas exigências do mercado de trabalho, têm o formidável desafio
de integrar um equivalente às “Artes Liberais”, que da Antiguidade à
Modernidade formaram os cidadãos “livres”, e resgatar, se não a letra, hoje
morta, o espírito da “Educação Moral e Cívica”. Mas ao longo da vida adulta há
muitas outras coisas que o Estado pode fazer.
Assim como há um serviço militar obrigatório para uns poucos
jovens, poder-se-ia considerar um serviço civil, se não obrigatório,
voluntário, mas para muitos. A Inglaterra, por exemplo, está implementando um
programa de formação, o Serviço Civil Nacional, para criar nos jovens o hábito
vitalício da ação social.
Há incentivos granulares e singelos, mas eficazes. Uma maneira de
garantir que voluntários se sintam estimulados é promover premiações e
reconhecimentos públicos. Desempregados e aposentados também podem receber
incentivos para se engajar em ações sociais. Enquetes com associações civis
mostram que um entrave recorrente é a falta de espaço para os encontros. Os
setores de RH dos empregadores também podem fazer muito mais para encorajar o
engajamento cívico em sua força de trabalho.
A participação política deve ser estimulada muito além do processo
eleitoral. A pluralidade participativa nos processos decisórios, que pode ser
tremendamente impulsionada pelas novas tecnologias digitais, não só resulta em
serviços públicos mais eficientes, mas em melhores cidadãos. As evidências
mostram que o engajamento cívico eleva os níveis de tolerância, confiança e
reciprocidade na sociedade.
Como se vê, se na construção dos direitos cívicos o papel do Estado é positivo, na construção da responsabilidade cívica ele é negativo – ou, mais exatamente, subsidiário. No primeiro caso, trata-se de erigir estruturas que garantam a inclusão de todos os indivíduos e de alicerces que sustentem a sua dignidade. Já no segundo, trata-se não de formá-los ou conformá-los sob um modelo pré-formatado de cidadania, mas de remover as barreiras que obliteram a sua inclinação natural de “animais políticos” a se engajar em sua comunidade, criando um espaço cívico vibrante no qual as suas associações livremente estabelecidas possam florescer.
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