A estabilidade serve para garantir a profissionalização do serviço público e não para tornar inimputáveis os ocupantes dos cargos
O Executivo federal apresentou um conjunto de propostas de reforma administrativa, algumas já presentes numa PEC enviada ao Congresso, outras que ficarão para legislação posterior. Em linhas gerais, um diagnóstico sintético desse conjunto de medidas revela uma mistura de várias coisas: ações norteadas pela experiência internacional de reformas, proteções a corporações fortes do funcionalismo, medidas concentradoras de poder nas mãos da Presidência da República e várias lacunas ou confusões de diagnóstico, em particular uma enorme incompreensão em relação ao funcionamento dos serviços públicos num país como o Brasil. Mais do que isso, falta visão sobre o que deve ser o Estado brasileiro.
Há
avanços no projeto vinculados, primeiramente, aos benefícios pagos aos
funcionários públicos, que se expandiram ao longo do tempo e se tornaram, no
mais das vezes, desvinculados do desempenho efetivo da burocracia. O ministro
Bresser Pereira já tinha começado a limpar esse terreno, mas ainda há grandes
problemas neste quesito. Também deve se atacar o uso completamente equivocado
da ideia de isonomia que se alastrou pela gestão de pessoas do setor público.
Um exemplo nesta linha foi a multiplicação de carreiras e o crescimento do
salário inicial no plano federal.
A leitura do projeto global de reformas dá a impressão de uma proposta “pela
metade”, de um reformismo incompleto. Por exemplo, o Executivo federal evitou
tocar nos direitos dos atuais servidores públicos, bem como deixou em aberto os
efeitos da reforma para os outros Poderes e para os demais entes federativos.
Alguns podem dizer que é uma estratégia política para poder aprovar outras
medidas importantes, embora mais do que uma forma de garantir o apoio dos
parlamentares, a razão desse cálculo seja principalmente evitar danos
eleitorais ao presidente Bolsonaro ou o aumento de seus problemas com a
Justiça.
A
opção reformista precisa alcançar todos os entes federativos e Poderes, e
evitar que a limitação das mudanças aos futuros burocratas não crie dois mundos
dentro do funcionalismo, gerando um sentimento de privilégio que poderá
atrapalhar o bom desempenho governamental, além de gerar uma visão negativa
junto à opinião pública. Aqui, a lição da reforma da Previdência não foi
aprendida: nem todos os Estados mudaram suas regras e se os que se omitiram
quebrarem, a União terá de salvá-los para manter os serviços públicos aos
cidadãos que mais necessitam deles. Efeitos semelhantes poderão acontecer na
reforma administrativa se não for criada uma maior simetria entre instituições
e entre membros do funcionalismo.
A
proposta de dar maior liberdade ao Executivo federal em montar sua estrutura
administrativa é uma forma perigosa de concentração de poderes. Trata-se do
retorno ao modelo de administração pública que vigorava no regime militar. A
lógica democrática exige um jogo de “checks and balances” entre os Poderes e o
presidente Bolsonaro tem dificuldades com esse modelo. Claro que é necessário
flexibilizar muitas das estruturas enrijecidas do Estado brasileiro, no entanto,
isso deve ser feito sem acabar com os controles institucionais adequados, tanto
do Legislativo como do Judiciário. Se isso não existisse hoje, parte dos órgãos
ambientais, de defesa dos índios, da área cultural e até mesmo no campo
educacional já teriam sido extintos pelo governo atual. Qualquer flexibilização
tem de cumprir os objetivos inscritos na legislação maior do país, que define
algumas políticas que são essenciais, e seu desmonte deve ser impedido pelas
instituições e pela sociedade.
A definição dos papéis do Estado e de como ele deve ser organizado passa não só
pelo modelo de administração pública, mas também pela forma como ela lida com a
política. É fundamental garantir um espaço autônomo aos políticos eleitos, mas
também se deve preservar funções estatais que não se confundam completamente
com o governo de ocasião. Mais do que isso: os eleitos devem nomear pessoas
para postos-chave seguindo regras prévias que garantam transparência,
competição entre postulantes e conhecimento/experiência adequados para a
função. Por isso, a proposta enviada é bastante tímida no que se refere à
seleção dos altos quadros governamentais. Neste ponto, o Brasil ainda é muito
pouco republicano e sabemos que a aliança com o Centrão não é um indício de que
isso mudará.
Há um
tema espinhoso no projeto, que deve ser enfrentado, mas que confunde conceitos
e supõe uma solução simples para algo mais complexo: a questão da estabilidade
do funcionalismo. Em primeiro lugar, nenhum país razoavelmente democrático e
desenvolvido do mundo garantiu estabilidade à quase totalidade dos seus
funcionários, como fez o Brasil. Há diferenças entre as nações sobre quais
carreiras devem ter, e com certeza as funções-meio foram retiradas dessa regra.
Se o Estado brasileiro tivesse adotado só essa máxima, a maior parte do
funcionalismo teria contratos ao estilo CLT, que devem estabelecer condições
dignas de trabalho como deveriam sempre existir do mesmo modo no mercado
privado.
Uma
segunda coisa é que se desenhou um modelo que separa estabilidade de avaliação
de desempenho. Na verdade, o que a proposta governamental está dizendo, de
forma sutil e envergonhada, é que as chamadas carreiras típicas de Estado não
poderão ser efetivamente avaliadas para fins de demissão ou correção por
insuficiência de desempenho. Isso é uma falácia, pois juízes e militares
deveriam ser avaliados tanto quanto professores e médicos. Todos eles são
essenciais para o Estado brasileiro, de maneira que precisam ser bem
selecionados, ter bons programas de capacitação e motivação, bem como têm de
ser avaliados e responsabilizados - e se necessário, demitidos. O país não
consegue enxergar o que é óbvio em muitas democracias: a estabilidade serve
para proteger e garantir a profissionalização do serviço público nas suas funções
mais importantes, mas não para tornar inimputáveis os ocupantes dos cargos.
Claro que há a desconfiança em relação aos mecanismos de avaliação, dada a
enorme tradição de politização do Estado brasileiro. Isso deve ser levado em
conta, como também o fato que a avaliação deve ser múltipla, gerar formas de
capacitação ou correção de atos e, ademais, ser feita da maneira mais
independente possível. Alguns países criaram instituições específicas para
realizar essa e outras tarefas mais estruturais da gestão de pessoas no setor
público, buscando evitar a perseguição administrativa ou política. O Brasil
pode aprender com esses modelos, contanto que queira efetivamente instalar um
processo avaliativo que, de um modo ou de outro, vai diferenciar os
funcionários e/ou equipes, dando-lhes benefícios ou responsabilizações
diferentes ao longo do tempo. Isso deve valer ao professor e ao juiz, ao médico
e ao militar. Só assim criaremos uma burocracia que serve ao público, e não a
si mesma.
Excetuadas
as funções-meio, a pergunta de quem deve ganhar a estabilidade é mais complexa.
A resposta deveria começar pela listagem de quais são as funções-finalísticas
que constituem as tarefas mais relevantes para o país no século 21. É inegável
que militares, juízes e auditores fiscais são centrais para o funcionamento do
Estado. Todavia, se o Brasil quiser se desenvolver segundo o que foi colocado
na Constituição de 1988 e, principalmente, pensando no que garantirá um futuro
melhor aos nossos filhos e netos, médicos, professores, forças de segurança,
assistentes sociais, profissionais da área ambiental e da garantia dos direitos
humanos básicos são imprescindíveis.
Alguém
tem dúvida de que, se pudesse, Bolsonaro mandaria embora amanhã mesmo a grande
maioria dos funcionários de ponta do Ibama e da Funai, que colocam suas vidas
em risco diariamente? Olhando para os integrantes do Centrão e tomando-os como
espelho dos governantes de grande parte dos municípios brasileiros, é bem
provável que eles barganhassem politicamente a contratação de professores,
médicos e assistentes sociais, como já fazem com o enorme contingente de cargos
comissionados sob sua guarida. No fundo, a pergunta é a seguinte: como evitar
que o Estado social brasileiro, com funções mais próximas do século XXI e não
do XIX, não seja desmanchado pelo patrimonialismo que ainda corre nas veias de
nossas elites?
A resposta para perguntas como essa vai exigir uma maior sofisticação
legislativa, que vai além da lógica dicotômica. A solução aqui passa pela
construção de uma visão sistêmica do Estado brasileiro, que combine os
componentes republicano-democrático e o do desempenho governamental. Tal
combinação, infelizmente, não está na base das propostas de reforma
administrativa atuais.
*Fernando Abrucio, doutor em
ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas
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