No apagar das luzes de sexta-feira, véspera de um carnaval atípico, o presidente Jair Bolsonaro aproveitou para promover um escandaloso “liberou geral” no acesso a armas e munições. Em quatro decretos, facilitou ainda mais a compra, a posse e o porte de armamentos. Num dos principais pontos, ampliou de quatro para seis o número de armas permitidas para cada cidadão. Agora, o brasileiro pode manter seu arsenal particular.
Além
disso, os decretos “desburocratizam” o acesso às armas. Tradução: afrouxam o
controle necessário sobre compra, posse e porte. Para entrar no grupo de
Colecionadores, Atiradores e Caçadores (CACs), o interessado precisa apenas de
um laudo assinado por qualquer psicólogo com registro ativo. Antes, exigia-se
um credenciado pela Polícia Federal. A compra de armas para os CACs não
precisará mais de autorização do Comando do Exército. Agora, ela só será
necessária quando o pedido exceder o limite de cada categoria.
A
flexibilização posta em prática desde de 2019 já resultara na multiplicação das
armas. Em 2020, o número de novos registros na Polícia Federal para cidadãos
comuns saltou 91% e foi o maior da série histórica. Não é preciso fazer
cálculos complexos para imaginar o que acontecerá agora.
Ao
comentar o decreto durante sua folga no litoral Norte de Santa Catarina,
Bolsonaro disse que o “povo está vibrando” com a decisão. Ora, é preciso viver
noutro mundo para imaginar que o povo esteja vibrando com alguma coisa. Num
carnaval com clima de Quarta-Feira de Cinzas, o país assiste a um desfile
macabro provocado pela tragédia do novo coronavírus. Faltam oxigênio, leitos de
UTI, vacinas e empregos. Mas o cidadão agora pode comprar até seis armas para
“se proteger”.
Evidentemente,
o aumento do número de armas em circulação não é o único fator que insufla a
violência. Nem o principal. Mas será que alguém em sã consciência acredita que
a segurança melhorará armando cidadãos até os dentes? Que tal fazer a pergunta
às mães de Ághata, Rebecca, Emilly, João Pedro e de tantas outras crianças e
adolescentes cujas vidas foram interrompidas por balas perdidas?
Não é difícil entender que mais armas e mais munição significam mais tiros. E mais tiros significam mais mortes, como já demonstraram dúzias de estudos acadêmicos. Ou armas não foram feitas para matar? É ridículo imaginar que elas serão compradas para ficar guardadas só como “proteção”. A tragédia está sempre à espreita.
Bolsonaro,
mais do que ninguém, deveria saber que, no cenário real da violência, a arma
não protege. Em 1995, quando era deputado federal, ele foi assaltado na Zona
Norte do Rio. Ficou sem a moto Honda Sahara 350 e sem a arma (uma pistola Glock
380). Se o porte significasse mais proteção, tantos policiais não morreriam
todos os dias — muitos fora do expediente, como cidadãos comuns.
Bolsonaro
acaba de fornecer mais pólvora às sangrentas estatísticas de criminalidade.
Dados do Monitor da Violência, do G1, mostram que os assassinatos no país
aumentaram 5% em 2020, em plena pandemia. Com decretos insanos, feitos sob
medida para agradar nichos eleitorais, de olho apenas em 2022, Bolsonaro
submete a sociedade brasileira a uma roleta-russa. Tamanha irracionalidade pode
até não aparecer de imediato nos índices de violência. Mas o tambor está
girando. É só uma questão de tempo.
Decretos da bala – Opinião | Folha de S. Paulo
Bolsonaro
põe segurança pública em risco para sustentar populismo armamentista
Com
a salva de quatro
decretos sobre armas de fogo disparados na sexta-feira (12),
Jair Bolsonaro deu nova demonstração de que está disposto a arriscar a
segurança pública do país para sustentar um tresloucado discurso populista.
Fiel
à promessa temerária de armar a população, o presidente facilitou o acesso a
dispositivos, munição e prensas. Diminuiu o controle do Exército sobre o
arsenal acumulado por civis e afrouxou normas que permitem rastrear armamento
empregado em assassinatos.
Bolsonaro
passa ao largo da alta de homicídios em 2020, que põe em xeque a propaganda
governista destinada a associar a melhora de 2019 à chegada da linha dura ao
poder. Conforme levantamento do portal G1, houve 5% mais assassínios no ano
passado, quando ocorreu o registro de 180 mil armas novas, 91% mais que em
2019.
O
número de armas em circulação deverá crescer ainda mais, uma vez que cada
pessoa poderá comprar até seis delas, e não mais o máximo de quatro. No caso de
atiradores, o total permissível passa para 60 peças; no de caçadores
registrados, serão 30.
Com
a nova regra, portadores de armas registradas, agentes de forças de segurança e
membros da magistratura e do Ministério Público poderão abastecer-se anualmente
com 5.000 cartuchos. Já a quantidade de projéteis de calibre restrito que podem
ser adquiridos a cada ano por atiradores desportivos sobe de 1.000 para 2.000.
Boa
parte das armas de fogo compradas legalmente, como se sabe, acaba chegando à
mão de criminosos. O próprio Bolsonaro já ficou sem pistola e motocicleta num
assalto em 1995. Além disso, mais armas entre cidadãos aumentam os riscos de
homicídios por motivo fútil, suicídios e acidentes.
Apesar
das consequências previsíveis, Bolsonaro afrouxou ainda os requisitos para
aquisições. Atestados antes exigidos de psicólogos credenciados na Polícia
Federal poderão ser feitos por profissionais sem tal registro; em alguns casos,
bastará “declaração de habitualidade” por clube de tiro, em flagrante conflito
de interesses.
O
presidente alega que o particular tem direito à legítima defesa, mas são comuns
as situações em que este reage e termina baleado, morto ou sem a arma. Bem mais
preocupante, porém, é a justificativa de que “o povo armado jamais será
escravizado”, proferida por Bolsonaro na fatídica reunião ministerial de 22 de
abril de 2020.
Felizmente, 72% do
eleitorado declarou discordar da sandice perigosa, como mostrou
pesquisa do Datafolha. Se as forças políticas souberem ouvir a
sociedade e os especialistas no tema, crescerá a chance de que
a obsessão armamentista do Planalto seja contida.
O tuíte do general – Opinião | Folha de S. Paulo
Relatada
com novos detalhes, ameaça ao STF em 2018 abriu precedente perigoso
Em
3 de abril de 2018, um dia antes de o Supremo Tribunal Federal negar um habeas
corpus que pouparia o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva de 580 dias de
cadeia, o Exército
resolveu falar do caso.
Na
forma de postagem no Twitter do então comandante Eduardo Villas Bôas, a Força
admoestou a corte sobre riscos à estabilidade institucional caso livrasse o
líder petista, alvo mais graúdo da Lava Jato, da prisão que o esperava.
“
Asseguro à nação que o Exército brasileiro julga compartilhar o anseio de todos
os cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à paz
social e à Democracia”, foi o texto descabido levado a público.
Nada
estava dito com todas as letras, mas o recado era claro. O próprio general
confirmaria, em entrevista à Folha no fim daquele ano, que tinha
agido no limite da responsabilidade institucional.
O
episódio voltou à tona com novas nuances, por iniciativa do próprio militar,
com a publicação
de um registro de história oral por parte do Centro de Pesquisa
e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getulio Vargas.
Nele, VB, como o general é conhecido, não fica nada bem.
Ele
repete a argumentação de 2018, segundo a qual não havia ameaça, e sim alerta
pelo que considerava risco de agitação golpista por parte da população caso
Lula fosse mantido livre.
O
relato se adensa quando o general sugere que o temor era o da volta da esquerda
ao poder. Lula, porém, estaria inelegível —como segue hoje, mesmo fora do
cárcere.
Também
é reveladora do quadro de então a descrição sobre como os fardados se
entusiasmaram com a ascensão da candidatura presidencial do capitão reformado
Jair Bolsonaro, até então mal visto devido a seu histórico de indisciplina.
Mais
perturbador é saber que integrantes da atual cúpula da República participaram
da discussão sobre tal nota na qualidade de membros do
Alto-Comando do Exército —e que o teor inicial da mensagem era ainda mais duro.
Não
que isso denote pendores golpistas. Tudo indica que a manifestação de Villas
Bôas ficou circunscrita àquele episódio, apesar das idas e vindas de militares
durante a crise institucional ensaiada por Bolsonaro ao longo de 2020.
O
próprio general busca apaziguar espíritos ao dizer que respeitaria qualquer
resultado da eleição. Nesse caso, mesmo o que é óbvio ululante precisa ser
reiterado.
Uma PEC cada dia mais emergencial – Opinião | O Estado de S. Paulo
A
PEC que segura a erosão fiscal crônica está encalhada no Congresso. Só no
primeiro ano, a economia seria de R$ 25 bilhões
Enquanto governo e Congresso batem cabeça para encontrar a quadratura do círculo, e investir em programas sociais sem aumentar impostos ou se endividar, a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 186/19, dita da “Emergência Fiscal”, está há mais de um ano encalhada no Congresso. A PEC nada tem a ver com a covid-19: ela foi desenhada para conter a erosão fiscal crônica quando atinge a fase aguda, enquanto o poder público não promove reformas que restituam a funcionalidade orçamentária da máquina administrativa. Mas, com a pandemia, ela se tornou mais “emergencial”. Uma Nota Técnica do Centro de Liderança Pública (CLP) mostra isso com didatismo.
Entre
2008 e 2018, o setor público aumentou em quase 10% o número de empregados.
Entre 2002 e 2017, enquanto a remuneração mensal média dos funcionários
públicos aumentou de R$ 3 mil para mais de R$ 4,2 mil (cerca de 40%), no setor
privado passou de R$ 2 mil para menos de R$ 2,4 mil (20%). Isso sem contar uma
pletora de privilégios (“penduricalhos”), sobretudo para o alto escalão,
notadamente no Judiciário. Se o setor público não tivesse tido aumentos
superiores aos do privado, teria tido um espaço fiscal de 1,3% do PIB (quase R$
90 bilhões) – 3 vezes o orçamento do Bolsa Família e mais que o déficit primário
de 2019.
“Com
elevações reais dos salários maiores do que no setor privado em ‘bons tempos’
econômicos, junto à impossibilidade de redução salarial nominal em períodos de
necessidade de austeridade, a folha de pagamentos do setor público tem elevado
progressivamente seu peso nas contas públicas, criando fortes dificuldades para
a gestão pública, especialmente de Estados e municípios, que, ao contrário da
União, não podem emitir títulos de dívida pública”, explica o CLP.
Não
havendo mecanismos para controlar os gastos obrigatórios (previdência e
salários), os discricionários (investimentos e programas sociais) são
sacrificados. Em 2019, o Brasil teve um investimento líquido negativo de 0,4%
do PIB, o pior da série iniciada em 2010. O orçamento do Bolsa Família para
2021 é 6% menor do que o de 2014. Inúmeros programas sociais subnacionais foram
reduzidos ou extintos.
Em
2020, o governo federal fechou o ano com um déficit primário de 10,9% do PIB, e
não há horizonte para o retorno do superávit primário (estimava-se que em 2030
o déficit chegaria a 0,78%). A dívida pública saltou de 56,2% do PIB em 2014
para 93% em 2020, patamar perigoso para um país emergente.
Dos
27 Estados, 21 já rompem o limite de gastos com pessoal da Lei de
Responsabilidade Fiscal, alocando mais de 54% das suas receitas líquidas para
custear o funcionalismo; 15 rompem também o limite prudencial, gastando mais de
57%; e 10 ultrapassaram a linha vermelha de 60%. Só seis Estados não
desrespeitam os limites da lei. A situação dos municípios é similar,
especialmente no Norte e Nordeste.
A
PEC prevê uma série de gatilhos, acionados automaticamente, caso a “regra de
ouro” (endividamento maior que os gastos com investimentos) seja rompida, como
proibição de reajustes salariais, concursos para contratação de pessoal,
reestruturação de carreiras, criação de cargos e promoções, além da redução de
25% da jornada de trabalho com redução proporcional da remuneração. Também
prevê, a partir de 2026, mecanismos de bloqueio para a criação, ampliação ou
renovação de benefícios tributários, além da reavaliação periódica dos
subsídios existentes.
No
caso dos entes subnacionais, pelos cálculos do CLP, se esses gatilhos fossem
aplicados, em 10 anos se economizariam R$ 75 bilhões. Ou seja, nos 10 anos de
vigência da PEC, a economia seria superior a 2 anos do Bolsa Família. Só a
redução dos reajustes já levaria a uma economia de R$ 35 bilhões a R$ 41
bilhões. Para a União, prevê-se uma economia de R$ 50 bilhões em 10 anos.
Só
no primeiro ano, a economia seria de quase R$ 25 bilhões (R$ 12,5 bilhões para
Estados e municípios e R$ 12 bilhões para a União). Como se vê, embora a PEC
Emergencial nada tivesse a ver com a pandemia, só se tornou mais, não menos
urgente com ela.
Enfim, emancipação do BC – Opinião | O Estado de S. Paulo
Atenção
ao emprego já está na pauta do BC. Não era preciso copiar a lei do Fed
O Brasil fica mais moderno, mais organizado e um pouco menos sujeito ao populismo com a aprovação da autonomia do Banco Central (BC), assunto discutido há décadas. Conter a inflação continuará sendo sua missão principal, a mais importante para o bem-estar das famílias e para o bom funcionamento da economia. Será menor o risco de palpites e interferências políticas nas decisões sobre juros e condições de crédito. Com mandatos de quatro anos, os diretores só serão demissíveis em condições definidas na lei. Além disso, seus mandatos nunca serão coincidentes com o do presidente da República. Dito isso, é preciso reconhecer um detalhe prosaico e certamente positivo: na prática, a política monetária já vem sendo conduzida de forma autônoma, há anos, e seus critérios e prioridades devem ser mantidos, talvez para surpresa de muitos parlamentares e escândalo de outros.
Defender
o poder de compra da moeda e garantir um sistema financeiro sólido, eficiente e
competitivo sempre foi missão do BC, definida na Lei 4.595, de dezembro de 1964.
Mas outros objetivos foram normalmente considerados na elaboração da política
monetária. Ao mexer nos juros, nas condições do crédito e, de modo geral, na
criação de moeda, os formuladores sempre levaram em conta os efeitos de suas
decisões na atividade econômica e no emprego. Sempre avaliaram, portanto, o
custo econômico e social de cada ação destinada a estabilizar os preços.
Não
há nada surpreendente nesse procedimento. Comparar benefícios e custos de cada
medida é mero exercício de racionalidade. Más decisões, muito frouxas ou muito
severas, podem ter sido tomadas, no Brasil e em quaisquer outros países, mas
isso é parte da vida normal. De qualquer forma, nenhum diretor de banco central
é um robô programado para decidir com base em apenas um objetivo.
A
política do BC tem sido conduzida, no Brasil, de forma bastante aberta. As
decisões do Comitê de Política Monetária (Copom) são informadas e explicadas,
em seus aspectos essenciais, logo depois de toda reunião deliberativa. Uma ata
com mais detalhes é divulgada na semana seguinte. Se lessem esses documentos,
ou pelo menos o noticiário neles baseado, parlamentares teriam produzido um
debate mais informado e mais inteligente durante a tramitação do projeto
recém-aprovado. Se entendessem um pouco mais do assunto, ou se procurassem
ajuda de pessoas competentes, teriam dito menos tolices e proposto, talvez,
emendas mais úteis.
Sem
surpresa, portanto, prevaleceu a ideia, defendida há muitos anos por alguns
parlamentares, de incluir a atenção ao pleno-emprego entre as funções do BC,
ampliando seu mandato legal. Com a explicitação desse ponto, copiou-se a
legislação dos Estados Unidos. O Federal Reserve (Fed, o banco central
americano) foi criado em 1913 com o mandato de “promover com eficiência os
objetivos de máximo emprego, preços estáveis e juros de longo prazo moderados”.
Na
prática, passou-se a procurar o máximo emprego compatível com preços estáveis,
sendo estes, portanto, a referência principal. Essa é a política básica seguida
até hoje, apesar das diferenças entre dirigentes mais propensos ao aperto ou ao
afrouxamento monetário. Vários políticos brasileiros entusiasmados com o modelo
do Fed parecem jamais haver entendido esses detalhes.
De
toda forma, a lei recém-aprovada inclui a atenção à atividade econômica e ao
pleno-emprego no mandato do BC, mas em posição secundária. Há nesse detalhe uma
aparência de bom senso, mas a política de crescimento envolve muito mais que
juros baixos e crédito amplo. Além disso, a inovação legal, embora nada
acrescente aos critérios normalmente seguidos pelo BC, pode estimular pressões
injustificadas e geradoras de insegurança econômica e financeira. Parte dos
congressistas defende a subordinação da política monetária ao Executivo. A
última experiência desse tipo, entre 2011 e 2013, resultou em forte aumento da
inflação e em desmoralização do BC. O conserto foi demorado e custoso. Melhor é
evitar experiências desse tipo.
A grande estratégia chinesa – Opinião | O Estado de S. Paulo
Democracias
liberais têm muito o que discutir em termos de coalizões internacionais
Alavancada pelo desempenho econômico mais extraordinário da história recente e provocada pelas tensões comerciais com os EUA, as demandas pelo desenvolvimento social da população e a pandemia, a China está acelerando sua grande estratégia de evolução interna e externa, política e econômica. Esta estratégia foi tema de um seminário promovido pelo Centro Empresarial Brasil-China com o historiador Jonathan Fenby.
“Duas
facetas da estratégia chinesa são projetadas para se encaixar: o desenvolvimento
econômico e o controle político em casa e fora”, resumiu Fenby. A China deve
consolidar seu papel como economia que mais cresce – 5% em média pelos próximos
15 anos –, mas com a crescente ambição de influenciar a política externa e
fortalecer o domínio do Partido Comunista na política interna.
Os
pilares econômicos vêm sendo consolidados nos oito anos em que Xi Jinping está
no poder: “Fortalecer a economia doméstica; impulsionar o consumo; encorajar
tecnologias avançadas; remodelar as cadeias de valor; e reduzir os riscos
gerados pelo padrão do crescimento do passado”. Já no exterior, “a China
promoverá seus interesses tanto regionalmente quanto globalmente, buscando mais
voz em organizações internacionais”.
Esta
estratégia será implementada em um novo contexto: a cooperação com o Ocidente e
o Japão, que marcou a trajetória da China desde os anos 70, foi em parte
substituída pela rivalidade, por sua vez amplificada durante a administração de
Donald Trump, em atritos que tocam a economia, a política, a sociedade e a
tecnologia. Com Joe Biden, pode-se esperar mudanças de estilo – “com uma agenda
mais coesa e, sobretudo, com mais consultas a seus aliados” –, mas não de
orientação.
A
comparação com a guerra fria é tentadora, mas tende mais a eludir do que a
esclarecer. “A área de cooperação entre EUA e China é bem maior do que os
pontos de desacordo.” De resto, a China é um adversário muito mais poderoso do
que a URSS, com um mercado e uma tecnologia mais dinâmicos, um governo mais
competente e uma economia mais integrada internacionalmente. A maioria dos
países deseja manter boas relações tanto com os EUA como com a China.
Como
parte de sua estratégia, a China deve facilitar o acesso ao mercado para
empresas estrangeiras. Além de projetar uma “Nova Rota da Seda”, o país fechou
no fim de 2020 um acordo de investimentos com a União Europeia e um acordo
comercial com 14 países da Ásia-Pacífico. O mercado chinês desperta cada dia
mais o apetite de empresas americanas e precisará reassegurar uma cadeia
estável de fornecimento de commodities – algumas particularmente importantes
para o Brasil, como o ferro, a soja e outros produtos agrícolas. Assim, China e
EUA, bem como as demais democracias liberais, “têm muito a perder engajando-se
em uma guerra fria”, afirmou Fenby.
As
possibilidades de transações econômicas e de cooperação geopolítica –
notadamente no combate às mudanças climáticas ou à pandemia – são promissoras.
Contudo, se o seminário com Fenby, tendo sido pautado por um centro
empresarial, pode ser escusado por não abordar questões políticas prementes –
como as violências praticadas pelo Partido Comunista contra Hong Kong ou os
muçulmanos de Xinjiang; seu desprezo pelos direitos humanos e acordos
internacionais; ou as ameaças a Taiwan e aos países do Mar do Sul –, as
lideranças políticas democráticas não podem se dar o direito de ignorá-las.
Ante o despotismo chinês, as democracias liberais têm muito o que discutir em termos de coalizões internacionais. Mas, até para que sejam efetivas, há muito trabalho interno a fazer. Isso implica revigorar suas economias, proteger sua autonomia tecnológica e impulsionar sua produção científica. Mas, mais importante, antes de considerar qualquer estratégia de contenção direta, o mundo democrático precisará revitalizar convincentemente suas instituições liberais e focar em valores humanos fundamentais para confrontar o despotismo “pelo poder do seu exemplo”, como disse Joe Biden, “e não pelo exemplo do seu poder”.
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