O Estado de S. Paulo
A pecúnia se associou ao golpismo criminoso e, em negócio lucrativo, o canal é a propaganda
Devemos garantir a liberdade de expressão
aos que falam abertamente em destruir a liberdade de expressão dos demais? A
resposta é sim. O espetáculo grotesco desse falatório fanático nos dá náuseas,
mas a resposta é sim. Enquanto estamos discutindo ideias e formulando críticas,
o debate público se resolve por si e nenhuma vírgula pode ser barrada.
Isto posto, vem a pergunta que de fato
interessa: então, quer dizer que um grupo semiclandestino de endinheirados,
ignorantes e fascistas, armados de carabinas e de supercomputadores até os
dentes repaginados e branqueados, pode fazer publicidade massiva do golpe de
Estado? Esse é o debate crucial. A liberdade de imprensa, ou de expressão, não
está em discussão aqui.
Essas falanges digitais, rurais e
enchapeladas, fardadas ou não, essas milícias que veneram a ditadura, a tortura
e a censura costumam se refugiar sob o manto da liberdade, mas isso é apenas
cortina de fumaça. Discuti-las pelo prisma da liberdade de imprensa ou de
expressão é cair na armadilha que elas armaram – e é um erro de método. Não é
de liberdade que se trata. Os indivíduos têm o direito de expressar seu
pensamento, mas esses destacamentos são organizações profissionalizadas
industriando a implosão da ordem democrática, justamente a ordem que nos
garante a liberdade de falar o que nos vai ou vem à cabeça.
Qualquer um pode dizer na imprensa ou na internet o que quiser, e disso não abrimos mão. O nosso desafio, porém, não passa por aí, mas por perceber que a liberdade de expressão e de imprensa não inclui a licença de praticar atos – muito mais do que palavras – que atentem contra os direitos fundamentais dos demais. Não estamos discutindo limites à liberdade de expressão. O que precisamos discutir, isso sim, são os limites que se estabelecem – e precisam se estabelecer – contra atos ilegais que se realizam além da liberdade de expressão.
A democracia já encontrou fórmulas eficazes
para resolver esse tipo de impasse. Vejamos um exemplo corriqueiro, elementar.
Um cidadão tem todo o direito de ir a público dizer que, em sua opinião, todas
as drogas deveriam ser descriminalizadas. Esse cidadão é livre para declarar em
qualquer lugar, a qualquer hora, que, no seu modo de ver, é razoável e
necessário liberar de uma vez a maconha, o LSD, a heroína, a cocaína. Está no
seu direito. Fora disso, o mesmo cidadão não tem o direito de, em nenhuma
hipótese, publicar nos jornais anúncios da maconha fornecida pelo fulano, que
está à venda no site tal, a preço de ocasião. A mesma democracia que garante a
plena liberdade de expressão e de imprensa restringe, com toda a legitimidade,
a publicidade de substâncias não autorizadas pela lei.
Tudo muito simples, óbvio, irrefutável.
Fazer publicidade de uma substância ou de uma prática ilegal não faz parte das
garantias postas pelo princípio da liberdade de expressão. A imprensa tem
liberdade para publicar todas as ideias, boas ou más. O ramo comercial da
publicidade não desfruta a mesma liberdade. As empresas têm é o direito de
anunciar seus produtos e serviços – desde que sejam produtos e serviços
devidamente legais. A rigor, a publicidade comercial não é propriamente um
capítulo da liberdade de expressão, mas uma extensão acessória de um negócio
comercial, regulada conforme as normas próprias desse negócio.
Para resumir, a liberdade de expressão e a
liberdade de imprensa não são a mesma coisa que direito de anunciar. As
primeiras são garantias fundamentais e não podem sofrer restrições do poder; o
segundo é um direito regulado e só pode ser exercido dentro dos termos da lei
que disciplina aquele mercado específico.
Tanto é assim que em vários países
democráticos não se aceita publicidade de bebidas alcoólicas para públicos
infantis ou adolescentes e nem por isso alguém vai dizer que a liberdade de
expressão tenha sido violada. Repita-se: liberdade de expressão não é igual ao
direito de anunciar. A democracia diferenciou as duas categorias, por justas e
sábias razões. A gente pode e deve criticar as autoridades, até mesmo com dureza,
mas ninguém pode fazer publicidade, sobretudo quando financiada de forma
obscura com recursos de origem mais obscura ainda, de atos criminosos contra as
sedes dos Poderes da República ou contra a integridade física de seus
representantes.
Vejamos outro caso. Um sujeito desmiolado
pode dar uma entrevista jurando que pinga com limão combate a pandemia. Mas
será que uma associação de profissionais tem o direito de promover o consumo de
remédios ineficazes como se fossem a panaceia, numa campanha publicitária paga
por empresas que têm interesse econômico na fabricação e na venda dessas
substâncias? Isso pode?
A ameaça que paira sobre a democracia
brasileira não decorre de um abuso da liberdade de expressão, mas de uma forma
disfarçada de publicidade (paga) antidemocrática. A pecúnia se associou ao
golpismo criminoso e, em negócio lucrativo, o canal não é o jornalismo, mas a
propaganda milionária. O pesadelo não são os autoproclamados patriotas, mas os
patrimoniotas.
*Jornalista, é professor da ECA-USP
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