O Estado de S. Paulo
Bolsonaro fica na retranca, cultivando e
eletrizando sua base de eleitores fiéis
Era uma vez uma turma de jovens liberais
que admiravam Ronald Reagan e Margaret Thatcher. No limiar do século 21,
passaram um réveillon juntos. Foram dormir acreditando no “fim da História” –
um mundo cada vez mais capitalista, democrático e globalizado. A ressaca veio
20 anos depois. Metade dos convivas não fala com a outra metade. Abriu-se entre
eles um fosso com nome e sobrenome: Donald Trump.
A história é contada por Anne Applebaum,
pena mais inquieta da direita liberal americana, em O Crepúsculo da Democracia. O livro é um dos melhores lançamentos do ano da editora Record – que, sob a batuta de Rodrigo Lacerda, ex-colunista do Estadão, vem se concentrando em autores relevantes, como Applebaum, e descartando os irrelevantes, como Olavo de Carvalho. “Muitos de meus amigos chegam a trocar de calçada quando me veem”, disse-me Applebaum quando do lançamento do livro. Ela permaneceu do lado liberal – portanto, radicalmente anti-trump.
Um hipotético réveillon em 2018 poderia ter
reunido, em torno da mesma garrafa de champanhe, João Amoêdo, João Doria, Kim
Kataguiri e Sérgio Moro, junto com Jair Bolsonaro e os bolsonaristas. Em 2021,
uma festa assim não seria mais possível. Moro saiu do governo atirando – e
Kataguiri, Amoêdo e Doria, simpáticos a Bolsonaro em 2018, hoje namoram a tese
do impeachment.
“A direita liberal que estava com Bolsonaro
por causa do antipetismo se descolou”, diz o cientista político Carlos Melo,
professor do Insper e entrevistado do minipodcast da semana. O tabuleiro de
2022 será marcado pela divisão das direitas e mais dois fatores: a rejeição a
Bolsonaro e sua estratégia eleitoral.
A popularidade do presidente está em queda
desde fevereiro. Nesse período, cresceu em 14% o número de eleitores que
consideram seu governo “ruim” ou “péssimo”. Nesta semana, o índice chegou a
53%, configurando pela primeira vez a rejeição da maioria absoluta. Os números
são do Ipec.
Diante desse quadro, Bolsonaro “joga por
uma bola”. Em vez de se lançar ao ataque, tentando reconquistar a direita
liberal que “se descolou”, o presidente fica na retranca, cultivando e
eletrizando sua base de eleitores fiéis. Considera que isso é suficiente para
levar o jogo para a prorrogação – o segundo turno. Sua esperança é que as
direitas se unam em torno de seu nome para derrotar o PT.
O discurso do dia 21 na ONU segue esse
esquema tático. De olho em sua base (e para vergonha dos demais brasileiros),
Bolsonaro descreveu um país de fantasia onde não há corrupção, desmatamento ou
instabilidade política. Um vídeo-exaltação circulou nos grupos bolsonaristas de
Whatsapp. Ele mostra o presidente brasileiro sendo supostamente ovacionado num
aeroporto em
Nova York. A imagem, na verdade, é de 2018,
e em outro aeroporto – o de Natal, no Rio Grande do Norte.
O jogo na retranca tem seus riscos. Como
mostrou o Ipec, Bolsonaro é hoje mais rejeitado que a esquerda. Não à toa, o PT
faz corpo mole quando se fala em impeachment. Apoiadores propagam que Lula
deseja ardentemente enfrentar Bolsonaro no segundo turno. O impeachment é um
bom negócio para os que buscam a “terceira via”, não para o PT.
O cenário lembra o dos Estados Unidos em
2020. A queda de popularidade de Donald Trump impulsionou a vitória de Joe
Biden – com o voto de liberais como Anne Applebaum. Se os números do Ipec se
mantiverem, a rejeição crescente a Bolsonaro pode eleger Lula.
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