O Estado de S. Paulo
Poder político brasileiro é pateticamente débil, e nada autoriza a crer que logo seremos um colosso
Centenas de pessoas não perdem uma chance
de cobrar “realismo” dos jornalistas e analistas políticos, como se a realidade
política fosse uma coisa unidimensional, percebida sempre da mesma forma por
toda a sociedade, hoje, amanhã e sempre.
Poucos se dão conta de que a “realidade” de hoje pode não ser a de amanhã, que por sua vez poderá diferir bastante da que teremos na próxima década. Esta observação seria inútil, se tivéssemos como superar as crises e acertar os rumos do País sem um grau razoável de convergência em nossas percepções. Sem esquecer que nossas preferências também divergem: alguns querem a democracia, outros anseiam por alguma forma de ditadura. Isso posto, peço licença para hoje escrever sobre uma realidade um tanto indefinida, que combina elementos de hoje com alguns de nosso passado histórico e outros situados no futuro, sendo que, sobre estes, é pouco o que nos é dado conhecer.
Ainda assim, atrevo-me a antecipar que o
poder político brasileiro – vale dizer, nosso Estado – é pateticamente débil,
uma decantação hoje virtualmente petrificada de muitos fracassos, e que nada
nos autoriza a crer que logo seremos um colosso. Em 1958, Celso Furtado
explorou esse tema pelo lado da história econômica, com o objetivo de
demonstrar que os grandes ciclos econômicos que vivemos (cana-de-açúcar no
Nordeste, mineração de ouro e diamantes em Minas e, finalmente, o café em São
Paulo) não deixaram uma base sólida para um processo sustentável de
industrialização, sem o qual não teríamos desenvolvimento, bem-estar e
autonomia nacional. Examinando o mesmo fato pelo lado político, vemos que os
resultados logrados foram ruins para a industrialização e desastrosos para a
construção do Estado, uma vez que abriram espaços para um contínuo relançamento
do patrimonialismo – a apropriação do poder político por setores empresariais
decadentes, que se especializaram em concentrar os ganhos e socializar as
perdas. Duas exceções permitem amenizar em certa medida esse argumento. A
exaustão do ouro deixou alguns núcleos favoráveis à pecuária bovina; nessa área,
o empresariado do Triângulo Mineiro, lixando-se para o governo federal,
desencadeou um poderoso crescimento a partir da importação e aclimatação das
raças zebuínas da Índia. O café, cujo legado foi mais importante, a começar
pela passagem do trabalho escravo para o assalariado, não diferiu totalmente da
cana-de-açúcar, uma vez que, forçado pela superprodução, teve de recorrer à
generosidade estatal, trocando sua altivez política pelas mesmas bênçãos do
Estado, que atuou como intermediário em mais uma reedição da “socialização das
perdas”.
Essa, em grandes linhas, é a história de
nosso mastodôntico Estado, cuja congênita inviabilidade se evidenciou com o
experimento da industrialização em “marcha forçada” deslanchado pelo governo do
general Ernesto Geisel. A “realidade” com que hoje nos deparamos é, pois, uma
estrutura de poder incapaz de promover o crescimento num ritmo compatível com o
aumento da população, com a superior organização de nossos competidores
internacionais e com nossa dramática anemia educacional, científica e
tecnológica.
Esta é a base sine qua non que precisamos
levar em conta para delinear futuras realidades que podem estar à nossa
espreita logo ali, ou um pouco à frente. O Brasil vive hoje uma polarização
política infantil e estéril, contrapondo dois líderes populistas que bem fariam
em se aposentar, dado já terem feito tudo o que ninguém os julgava capazes de
fazer pelo Brasil – para o bem e para o mal. Lula, aos 77 anos, já bateu no
teto, e o mesmo acontece com Bolsonaro, na pujança de seus (presumíveis) 15
anos. Sabemos todos que o clima de radicalização e turbulência é música para os
ouvidos de Bolsonaro, reforçando a condutibilidade atmosférica que lhe facilita
mobilizar seus fanáticos. Dá-se, no entanto, que este clima mantém o dólar valorizado
e empurra a inflação para cima, a última crueldade que nossa medíocre
politicagem pode perpetrar contra os 46 milhões de indivíduos que vivem em
lares com zero reais de renda mensal.
Eu, com certeza, serei acoimado de irrealista se disser que ambos, Lula e Bolsonaro, poderiam fazer-nos o favor de ir para casa, para que o Brasil possa voltar à sua precária normalidade e retomar o processo de crescimento econômico. Realistas são os que tentam ver Lula não só como o imbatível antibolsonaro, mas também como o grande estadista-pacificador que ele nunca foi e não tem condições de ser. Com lápis e papel à mão, os que insistem em enxergar a realidade por esse prisma já podem, então, pôr mãos à obra, rascunhando seu cenário para daqui a dez anos. No centro de seu idílico desenho estará – Deus seja louvado – nossa política, finalmente renovada pelo Centrão. Os 46 milhões sem renda terão subido um nível, compartilhando a felicidade dos que auferem ao menos até um salário mínimo de renda mensal. Entre os Três Poderes, reinarão a harmonia e a independência que a Constituição tão sabiamente prescreve.
*Membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira
de Ciências, seu mais recente livro é ‘Antes que me esqueça’ (Editora Desconcertos)
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