O Estado de S. Paulo
Não há mais como ignorar que a responsabilidade pelas fontes das aflições que calcinam o espírito do tempo é integralmente nossa
A angústia que consome os seres sensíveis
do nosso tempo tem pelo menos três fontes. A primeira é a destruição acelerada
dos recursos naturais do planeta, o que traz aquecimento global, pandemias e
alterações climáticas extremas, com mais enchentes, mais secas e mais
ventanias. Em segundo lugar, vem a dissolução das paredes da privacidade.
Algoritmos extraem dados íntimos de toda gente para abastecer estratégias que
desinformam e semeiam medo, preconceito e ódio. A desinformação industrializada,
por sua vez, gera a terceira fonte de angústia: o declínio da democracia. Em
toda parte, o autoritarismo ganha força, inclusive entre aqueles que, alegando
defender as liberdades, são truculentos.
O pior é que a culpa é nossa. Não há mais
como ignorar que a responsabilidade pelas três fontes das aflições que calcinam
o espírito do tempo é integralmente nossa. Não é mais possível jogar a conta
para os “outros”. A culpa não é “da indústria”, não é “da China”, não é “do
marxismo cultural”, não é “da ideologia de gênero”, não é “do Google”, não é
“do Trump” ou “do Bolsonaro”: é nossa, é minha, é sua, é de todo mundo. Os
sujeitos pensantes, que são raros, olham para a frente e enxergam o fracasso. A
nossa capacidade de agir coletivamente com base na razão vai malogrando em
lances bizarros. A angústia se cristaliza em impotência.
Examinemos os fatos. De início, vejamos o que se passa com a destruição da natureza. Depois da COP-26 (a Cúpula do Clima, em Glasgow, na Escócia), não há mais espaço político, lógico, ético ou científico para dizermos que o ser humano não tem parte no aquecimento global. Não dá mais para disfarçar. Quem pôs fogo no clima fomos nós. Quem leva a humanidade rumo à extinção é a própria humanidade. Tanto isso é verdade que o português António Guterres, secretário-geral da ONU, fez o seu alerta em tom ameaçador: “Basta de cavar a nossa própria cova!”.
Foi em 1945, com as explosões atômicas
sobre Hiroshima e Nagasaki, que a humanidade se deu conta de seu potencial de
acabar consigo mesma. Nós, que já sabíamos que as civilizações eram mortais,
nos demos conta de que as civilizações poderiam também se suicidar.
Mas, naquele entremeio do século 20,
achávamos que o risco de aniquilarmos a vida na Terra tinha que ver com o risco
de eclosão de uma guerra nuclear. Hoje, a velha ilusão virou pó. Percebemos,
tardiamente, que os hábitos de consumo podem incinerar mais que as ogivas de um
míssil. Aprendemos que não precisamos de explosivos para pôr fogo em florestas,
extinguir espécies e matar nossos semelhantes. Vimos que o nosso modo de viver
é o modo mais fatal de matar. Não, não há inocentes desenroscando a tampa de
uma garrafa pet.
Outra ilusão que se desmanchou no ar foi
aquela de achar que era preciso um controle burocrático central para que o dito
“sistema” grampeasse em definitivo a intimidade dos viventes. Antes, imaginávamos
que seria necessário existir um “Big Brother” – como no livro
1984, de George Orwell – para que o poder
conseguisse vigiar os indivíduos e a sociedade inteira. Quanta ingenuidade.
Diante do que se passa atualmente, a ficção
distópica de Orwell mais parece uma cantiga de ninar. Ficou evidente que a
vigilância total não precisa de gerente nenhum, de “Big Brother” nenhum. O
narcisismo alucinado de toda gente é o que basta para mover as tecnologias que
bisbilhotam cada piscar de olhos de cada habitante da Terra. A vaidade
exibicionista impulsiona os dispositivos da espionagem generalizada.
Descobrimos, enfim, que o “Big Brother” não é um burocrata no comando das
máquinas, mas um agente difuso: todos os olhos de todos os seres são os seus
olhos. A sociedade do espetáculo, do hedonismo e da ostentação é a outra face
da sociedade da vigilância. Qualquer semelhança com o totalitarismo não é mera
coincidência. Não, não há inocentes alisando com a ponta dos dedos a tela de um
celular.
Com isso chegamos à estafa das democracias.
Em cada país, a coreografia é diferente, mas a tragédia de fundo é a mesma: os
fundamentos da democracia estão no limiar de um burnout institucional. Aí o
sujeito levanta o dedo: “Mas eu não votei no fulano que aí está”. O outro
também se esquiva: “Eu votei, mas me arrependi”. Não adianta. A
responsabilidade é comum.
O caso brasileiro aqui está para nos servir
de evidência empírica. Todos somos responsáveis. Uns porque sufragaram o
inquilino do Alvorada. Outros porque deixam que ele continue lá, exatamente
onde está, apesar das atrocidades que cometeu. Um dia, quando formos chamados a
explicar por que conferimos a este bárbaro a mais completa impunidade, não
teremos nada que declarar além da nossa pusilanimidade como nação.
Você quer esperança? Pois não. Enquanto os
brasileiros se ajoelham, a humanidade segue procurando meios de atenuar o
desastre ambiental. O primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, vê uma
chance, embora tenha medo do julgamento da História: “Se fracassarmos, as
gerações futuras não nos perdoarão”. Ao menos ele, Boris Johnson, tem alguma
ideia da responsabilidade que carrega.
*Jornalista, é professor da ECA-USP
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