Folha de S. Paulo
Na ordem democrática, Lula e Bolsonaro são
mesmo equivalentes?
A direita democrática ainda não conseguiu
encontrar o seu lugar na eleição presidencial deste ano. Sei que muitos, à
esquerda, acabaram de dar um risinho de canto de boca: "Direita
democrática? Isso é como cabeça de bacalhau. Dizem que existe, mas ninguém
vê".
Pois é. Cá nas minhas considerações, não se
trata de uma fantasia. Mas ela não pode ser refém dos próprios equívocos. Se a
prosa não mudar de rumo —e tenho dúvidas sinceras se haverá tempo—, o
segundo turno entre Lula e Bolsonaro está contratado. Hoje, Lula é franco
favorito e poderia vencer no primeiro turno. Mas a eleição não é hoje.
Há vários fatores concorrendo para tal quadro, que não chamo "polarização" —outra bobagem. Uma das causas determinantes está na tentativa de se criar uma quimera da negação: a "terceira via". Tratar-se-ia de um ser híbrido que, a um só tempo, carregasse virtudes de Bolsonaro (havendo alguma...) e de Lula, mas destinada a não ser nem uma coisa nem outra.
Fui o primeiro a chamar essa criatura
imaginária, gestada no mundo como ideia, de candidato "nem-nem". Se
não faço atribuição indevida, tomei a expressão emprestada a Roland Barthes.
Era uma ironia. Dia desses, vi
Luciano Bivar, presidente do União Brasil, a defender o "candidato
nem-nem". Bolsonaro é a soma de sortilégios, burrice, truculência e
desgoverno que conhecemos. Nota à margem: virou boneco de mamulengo da própria
gestão e animador de reacionarismos.
Arthur Lira, Ciro Nogueira e seus sócios
(des)governam o país, mantendo o Orçamento sequestrado. Não fosse assim, o
biltre teria sido defenestrado. Nós pagamos o resgate. De volta ao fio.
O homem é tudo isso, mas tem uma base fiel,
resiliente, que precisa da dose cotidiana de sandices para se manter
unida. Há
risco de falta de fertilizantes? A resposta é tentar acelerar, com a
conivência de Lira, a mineração em terras indígenas, para indignação até das
empresas legais do setor.
Ocorre que esses eleitores existem, são
muitos milhões, habilmente mobilizáveis pelos miasmas de estupidez que emanam
das redes sociais.
Vejam
o caso de "Como se tornar o pior... filme do mundo". Trata-se de
um monturo de piadas politicamente incorretas e de agressão a valores
comezinhos da civilidade. A extrema direita tinha adorado as diatribes de um
então ídolo seu, não é pastor Feliciano? Mas o protagonista virou desafeto. E
as milícias bolsonarianas, afinadas com o espírito mafioso, são mais cruéis com
"traidores" do que com inimigos.
O troço é pavoroso, mas não faz a apologia
da pedofilia. Isso é mentira, e a censura
é inconstitucional. Eis uma cama de gato. E muitas outras haverá. Defenda a
Constituição, mesmo quando o objeto em disputa é ruim —e a lei também tem de
proteger os idiotas— e leve na testa a pecha de "defensor da
pedofilia".
Assim como, no passado, os que atacaram os
desmandos da Lava Jato foram classificados de "amigos da corrupção"
—espírito que ajudou a eleger Bolsonaro, note-se.
Essa gente veio para ficar. Será muito
difícil entrar nesse universo sem aderir a seu cabedal de monstruosidades
morais. Vinte e tantos por cento dizem "não" a um dos
"nens". Bolsonaro é o que desejam. Sergio Moro tentou
fornecer doses mais dissimuladas de reacionarismo, mas esse público não quer. O
presidente toma de volta percentuais que eram seus e que o ex-juiz suspeito
havia conquistado.
O segundo "nem", o que se refere
a Lula, ignora a história do país da redemocratização a esta data e tenta
reduzir a história do PT às peças judiciais criadas pelo lava-jatismo. O
partido está fora do poder há seis anos.
Que tratamento o Estado brasileiro
—incluindo a direita democrática lá do primeiro parágrafo— dispensou nesse
tempo às demandas dos que têm renda de dois salários mínimos? São 70% dos
brasileiros.
Inexiste legitimação política pela negação.
De resto, cabe indagar: no que respeita à preservação da ordem
democrática, Lula
e Bolsonaro são mesmo equivalentes, são "nem-nem"? Ela não é
o pressuposto a partir do qual as divergências devem ser exercitadas? Pergunta
final: há tempo para corrigir o rumo?
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