Vitória de Haddad nos combustíveis é sinal positivo
O Globo
Se Lula começar a ouvir mais seu ministro
da Fazenda, a economia brasileira só terá a ganhar
Nestes dois primeiros meses de governo, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, tem defendido posições sensatas na área econômica. Tal postura o tornou alvo de fogo amigo de petistas. O árbitro da disputa é o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. A volta da cobrança de tributos federais sobre gasolina e etanol a partir de hoje é a segunda vitória de Haddad em questão de semanas (a outra foi o adiamento na revisão de metas de inflação). É certo que foi uma vitória parcial, pois os impostos não foram 100% restaurados e, para compensar, a Petrobras promoveu redução de preços e na distribuição de dividendos, deixando parte da conta para seu acionista. Mesmo assim, se Lula tiver passado a escutar com mais atenção quem escolheu para chefiar a equipe econômica, será uma ótima notícia para o país.
Haddad começou na Fazenda sofrendo derrotas
desnecessárias. Logo no dia 2 de janeiro, Lula prorrogou por Medida Provisória
a desoneração de impostos sobre os combustíveis, medida eleitoreira e
demagógica tomada em 2022 pelo então presidente e candidato Jair Bolsonaro.
Enquanto se esforçava para dar credibilidade ao governo na economia, escolheu o
presidente do Banco Central (BC), Roberto Campos Neto, como bode expiatório.
Seus ataques à independência do BC e às metas de inflação geraram ruído e
incerteza, tornando mais difícil o trabalho de Haddad. Outro revés aconteceu na
definição do ajuste do salário mínimo. Preocupada com os efeitos nas contas do
Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), a Fazenda era favorável a um
aumento menos generoso que os R$ 1.320 aprovados por Lula.
A ala política do governo insistia em
manter a desoneração dos combustíveis, para evitar desgaste diante da opinião
pública. Haddad sempre manifestou preocupação com a arrecadação e com os riscos
fiscais iminentes. Numa espécie de corrida de recuperação, parece estar
conseguindo convencer seu chefe. Não houve mudança nas metas de inflação na
última reunião do Conselho Monetário Nacional (CMN) em fevereiro. Mesmo com
ataques públicos à reoneração por figuras como a presidente do PT, Gleisi
Hoffmann, Lula não deixou de ouvir e de atender à demanda de Haddad.
Associada à criação de um imposto sobre
exportação de óleo bruto, a decisão renderá R$ 28,9 bilhões aos cofres
públicos, quantia crucial para o ajuste fiscal. A desoneração era uma medida
socialmente injusta, por beneficiar donos de automóvel e incentivar o consumo
de combustíveis fósseis, danosos para o ambiente. Numa iniciativa sensata, o
governo reonerará o etanol em patamar inferior à gasolina — 8% ante 68% —,
medida compatível com uma gestão ambientalmente responsável.
Em dois meses, o governo perdeu tempo e
energia com questões desnecessárias e tornou públicas suas divisões. O fato de
Lula passar a ouvir mais Haddad é um alento. Se o ministro da Fazenda continuar
a seguir o caminho da razão e contar com o apoio do presidente, a economia
brasileira só terá a ganhar.
É gravíssima a suspeita de uso político da
Receita
O Globo
É necessário investigar chefe de
inteligência acusado de violar sigilo fiscal de opositores de Bolsonaro
São gravíssimas as denúncias de que o chefe
de inteligência da Receita Federal no governo Jair Bolsonaro, Ricardo Pereira
Feitosa, acessou e copiou dados sigilosos de opositores do então presidente.
Segundo o jornal Folha de S.Paulo, um dos alvos da quebra de sigilo foi o então
procurador-geral de Justiça do Rio, Eduardo Gussem, responsável à época por
investigar acusações de “rachadinhas” no gabinete de Flávio Bolsonaro quando
deputado fluminense, denúncia que acabou arquivada. Entre os dados copiados, estão
declarações completas do Imposto de Renda no período de 2013 a 2019.
De acordo com as acusações, também foram
expostos dados do ex-ministro Gustavo Bebianno, que morreu em março de 2020, e
do empresário Paulo Marinho. Ambos romperam com o bolsonarismo. Bebianno, que
ocupara a Secretaria-Geral da Presidência, foi demitido em meio a uma crise
gerada pela suspeita de que o PSL (partido de Bolsonaro na ocasião) usara
“laranjas” nas eleições de 2018. Marinho virou uma espécie de homem-bomba
depois de denunciar que Flávio fora informado previamente de uma operação
sigilosa da Polícia Federal.
De acordo com registros, os acessos
aconteceram nos dias 10, 16 e 18 de julho de 2019, primeiro ano da gestão Bolsonaro.
Na época não havia apuração fiscal que justificasse a devassa. A Receita abriu
um procedimento para investigar os motivos da invasão. Evidentemente, é preciso
cautela antes de tirar conclusões. Feitosa, hoje auditor fiscal da
administração aduaneira da Receita em Cuiabá, negou em nota qualquer violação,
disse que “não vazou dados sigilosos” e que “sempre atuou no estrito
cumprimento do dever legal”. A defesa dele argumentou ainda que “sua vida
funcional sempre foi reconhecida pela seriedade, zelo, atenção ao interesse
público e cumprimento estrito dos deveres legais”.
O avanço sobre informações sigilosas de
contribuintes não é fato novo. Em 2010, no segundo governo Lula, foi quebrado o
sigilo fiscal de cinco contribuintes vinculados ao PSDB, entre eles a filha de
José Serra, então candidato à Presidência. As investigações na ocasião
apontavam para um time de arapongas vinculados à campanha de Dilma Rousseff,
então candidata petista e adversária de Serra. Não houve maiores consequências
para os acusados.
É preciso investigar com serenidade o que aconteceu na Receita durante o governo Bolsonaro, conhecido por usar organismos de Estado em benefício próprio ou de familiares e amigos. É essencial ouvir todos os envolvidos. Não deve ser difícil rastrear os acessos, já que toda movimentação nos sistemas da Receita gera registros. Feitosa terá de dar explicações convincentes sobre os motivos que o levaram a acessar dados de opositores do governo. Por enquanto, são só suspeitas. Se confirmadas, a Receita precisará tomar as providências cabíveis. É assustadora a mera perspectiva de o governo bisbilhotar o cidadão valendo-se de instituições idôneas, como a Receita, para favorecer um grupo político, seja qual for.
O STF e os militares
Folha de S. Paulo
Manter processos contra fardados no Supremo
amplia chances de condenar culpados
O ministro Alexandre de Moraes disse pouco
mais que o óbvio ao fixar a competência do Supremo Tribunal Federal para processar e
julgar crimes ocorridos nos ataques de 8 de janeiro a Brasília,
independentemente de os investigados serem civis ou militares.
Não é de hoje, afinal, que o STF aponta a
diferença entre crimes dos militares e crimes militares, reservando apenas a
estes o foro especial da Justiça Militar.
Decorrência natural do artigo 124 da
Constituição, a distinção, a um só tempo sutil e decisiva, faz todo o sentido:
o integrante das Forças Armadas deve responder a tribunais castrenses somente
quando praticar delito definido pela legislação militar; nas demais
circunstâncias, seu lugar é a Justiça comum.
Em sua decisão de segunda-feira (27),
Alexandre de Moraes apenas ligou os pontos entre esse entendimento e as
condutas em tela no 8 de janeiro. Nada há ali que justifique a presença da
Justiça Militar, dado que os crimes em apuração dizem respeito ao patrimônio
público e a ordem democrática.
A despeito dessa argumentação bem
assentada, o ministro-brigadeiro Joseli Parente Camelo, futuro presidente do
Superior Tribunal Militar (STM), concedeu
entrevista a esta Folha para asseverar o acerto do ministro do
Supremo.
É que, em certos setores da caserna e entre
apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), circulou uma versão segundo a
qual o STF teria afrontado o STM.
O apelo à lógica maniqueísta não chega a
surpreender. Ela atrai, em boa medida, pessoas que não aquilatam o valor da
democracia nem compreendem o funcionamento das instituições republicanas, nas
quais o mundo não se divide simploriamente entre bem e mal.
É o mesmo tipo de militante desvairado que
vandalizou Brasília: uma turba que, movida por ideologia extremista, renega o
Estado de Direito, mas que não deixa de recorrer a ele quando convém —por
exemplo, para denunciar as condições de encarceramento.
Há uma ironia patente no reclamo, mas, para
sorte dessa malta, o Estado de Direito precisa ser mais generoso do que seus
inimigos, sob pena de confundir-se com eles.
Daí por que o ministro Moraes deveria
acelerar a soltura daqueles presos provisórios que não representam mais perigo
à sociedade nem às investigações, concentrando esforços em torno do núcleo
formado por líderes, financiadores, reincidentes e violentos.
Se fardados estiverem nesse núcleo, não há
como cogitar sua impunidade. Dado o histórico de corporativismo da alta corte
militar quando se trata de julgar altas patentes, o fato de os processos contra
militares ficarem sob vistas do STF não deixa de ser boa notícia.
Trabalho a preservar
Folha de S. Paulo
Após melhora em 2022, retrocesso no emprego
pode ter custo alto para Lula
São dignos de celebração os números que
mostram a expressiva queda do desemprego no país ao longo do ano passado,
divulgados pelo IBGE nesta terça-feira (28).
Encerrou-se
2022 com taxa de desocupação de 7,9% no quarto trimestre, ante 11,1%
medidos 12 meses antes e 14,2% ao final de 2020, quando se vivia o pior do
impacto da pandemia. Trata-se da melhora mais longa e aguda desde o fim da
recessão de 2014-16.
Isso não quer dizer, claro, que se viva um
momento brilhante de pujança econômica e ascensão social. Há senões, a começar
pelo rendimento médio do trabalho de R$ 2.808 mensais —que, embora tenha
aumentado recentemente, ainda é o menor em cinco anos.
As médias, ademais, escondem desigualdades
de todos os tipos. O desemprego entre as mulheres nordestinas ainda atinge
alarmantes 13,2%, enquanto entre os homens do Sul não passa de 3,6%. Não parece
absurdo, aliás, correlacionar tais percentuais aos perfis dos eleitores de Luiz
Inácio Lula da Silva (PT) e Jair Bolsonaro (PL).
Nada menos que 16,4% dos jovens de 18 a 24
anos em busca de ocupação não a conseguem. Entre os que se declaram pretos, a
taxa de desocupação é de 9,9%, ante 9,2% dos pardos e 6,2% dos brancos.
Pode-se constatar, de qualquer modo, que o
mercado de trabalho se tornou mais favorável em todos os recortes, graças a um
crescimento surpreendente da economia, em torno dos 3% no ano passado.
Já os impactos da
reforma trabalhista de 2017 ainda são difíceis de mensurar —mas
ao menos se esvaziaram teses desonestas que associavam a flexibilização da CLT
a números ruins, em períodos anteriores, provocados por estagnação econômica ou
pela crise sanitária.
A informalidade, principal alvo da reforma,
caiu de 40,7% para 38,8% da população ocupada, percentuais que somam
assalariados sem carteira assinada, trabalhadores familiares, autônomos e
empregadores sem CNPJ.
Trata-se ainda de uma exorbitância, o que
antes confirma o acerto do objetivo de permitir contratos de trabalho mais
realistas e adaptáveis a diferentes atividades. É evidente, porém, que não
haverá avanço expressivo sem expansão continuada do Produto Interno Bruto.
O governo Lula não deveria abordar o tema apenas com o viés do sindicalismo —o das corporações organizadas. Retrocessos no emprego podem ter custo político particularmente alto para o petista.
Finalmente Haddad ganha uma
O Estado de S. Paulo.
O simples fato de que o ministro teve
imensa dificuldade para convencer Lula a voltar a tributar a gasolina, algo que
deveria ser trivial, mostra a força do populismo lulopetista
Dificuldade para convencer Lula a tributar
gasolina mostra a força do populismo.
Oministro da Fazenda, Fernando Haddad,
venceu uma importante batalha ao convencer o presidente Lula da Silva a
autorizar a volta da cobrança de tributos federais sobre a gasolina. Alvejado
publicamente pela chamada “ala política” do governo e por lideranças
demagógicas do Congresso, como se estivesse cometendo um crime de lesa-pátria,
o ministro felizmente conseguiu reverter a medida populista que desonerou a
gasolina, tomada pelo governo de Jair Bolsonaro no ano passado, na sua
tentativa desesperada de se reeleger.
Era esperado que Haddad, como chefe da
equipe econômica, defendesse a volta da tributação sobre a gasolina, pois era
um dos pilares do pacote fiscal anunciado para reduzir o déficit de R$ 230
bilhões projetado para este ano e, junto com a tributação do etanol,
contribuirá com quase R$ 29 bilhões em receitas à União. Para além da questão
econômica, no entanto, havia muitos outros pontos favoráveis à medida.
Não cobrar impostos sobre a gasolina é o
mesmo que subsidiá-la, e, em um país com desigualdades sociais tão evidentes,
em que milhões de famílias dependem de programas de transferência de renda para
sobreviver, não há motivos para justificar que o Estado abra mão de impostos
para beneficiar proprietários de veículos. Sob o viés ambiental, não faz
sentido que o Brasil conceda tratamento especial para um item poluente no
momento em que pretende assumir protagonismo internacional em defesa da
economia verde e da proteção do meio ambiente.
Neste caso em particular, a razão sempre
esteve do lado de Haddad. Por isso mesmo, impressiona a quantidade de reuniões
e a energia despendida pelo governo para debater um tema que deveria estar
pacificado, fosse o governo responsável como Lula vive a alardear. A
dificuldade para encontrar uma solução não era técnica, pois não havia
controvérsia nenhuma, e sim política, pois o governo precisava encontrar uma
maneira de lidar com uma crise artificial e enfrentar o desgaste associado à reversão
de uma política equivocada sob qualquer ponto de vista.
Com décadas de experiência, Lula caiu em
uma armadilha deixada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro ao prorrogar a
desoneração, trazendo para si um problema que poderia ter sido resolvido no fim
do ano passado. Tivesse a racionalidade econômica prevalecido no debate desde o
início, a volta da tributação teria sido determinada já em janeiro. Como não
foi esse o caso, abriu-se espaço para a demagogia.
O subsídio aos combustíveis foi uma agenda
fabricada na campanha à reeleição do ex-presidente Jair Bolsonaro.
Diferentemente de 2018, quando o governo Michel Temer teve de adotar um
subsídio ao diesel para dar fim à greve dos caminhoneiros, não havia, no
governo Bolsonaro, ameaças de paralisação do País. A guerra na Ucrânia foi um
pretexto covarde para o ex-presidente adotar ações que só favoreciam a ele
mesmo, ao atropelo das leis e da Constituição.
Mesmo diante desses fatos, houve pressão de
gente do próprio governo e do partido de Lula para ignorar Haddad e renovar a
desoneração. Quando se digladia publicamente em disputas fratricidas e frita um
de seus principais ministros para defender uma agenda claramente populista, o
governo Lula, o PT e sua base de apoio no Congresso alimentam a sensação de que
não é sério o compromisso do presidente com a responsabilidade fiscal. Não que
tivéssemos grandes ilusões a esse respeito, mas, dado que o governo mal começou,
seria justo dar um voto de confiança. Ao permitir que seus porta-vozes mais
radicais no PT isolem um ministro da Fazenda que, ao menos na aparência, se
mostra interessado em ajustar as contas públicas, Lula rasga esse voto.
A lealdade de Haddad a Lula é inequívoca e
teve peso fundamental em sua escolha para o cargo, e só isso explica que o
ministro da Fazenda tenha engolido tantos sapos sem dar um pio. Sabese lá que
cálculos Lula está fazendo, mas, para o Brasil, interessa que a “ala política”,
isto é, os sabotadores instalados no governo e na direção do PT, sejam
neutralizados por quem manda no partido e no governo, que é Lula. Por ora,
embora Lula tenha permitido que Haddad ganhasse uma depois de tantas derrotas,
parece que o chefão petista não está muito interessado nisso.
Justiça Militar é só para crime militar
O Estado de S. Paulo.
Moraes entende que a Justiça comum é
competente para julgar militares envolvidos no 8 de Janeiro. A decisão é
correta, mas seria bom que o plenário do STF a referendasse
Ao autorizar um pedido de investigação
feito pela Polícia Federal (PF), o ministro Alexandre de Moraes entendeu que o
Supremo Tribunal Federal (STF) é competente para processar e julgar os crimes
ocorridos no 8 de Janeiro, “independentemente de os investigados serem civis ou
militares”. A decisão está correta.
A Justiça Militar tem competência restrita,
processando e julgando apenas “os crimes militares definidos em lei” (art. 124
da Constituição). “Nenhuma das hipóteses definidoras da competência da Justiça
Militar da União está presente nesta investigação”, disse Alexandre de Moraes.
Reconhecer a competência da Justiça comum para processar e julgar eventuais
crimes praticados por militares no 8 de Janeiro é, assim, manifestação de
respeito ao princípio do juiz natural.
Ao aplicar a jurisprudência do STF no
sentido de que a Justiça Militar julga “crimes militares”, e não “crimes de
militares”, Alexandre de Moraes reafirmou o princípio fundamental da República:
a igualdade de todos perante a lei. A existência da Justiça Militar não é
privilégio para os membros das Forças Armadas, como se eles tivessem direito a
um tribunal especial por sua condição de militares. “O Código Penal Militar não
tutela a pessoa do militar, mas sim a dignidade da própria instituição das
Forças Armadas”, diz a jurisprudência do Supremo, mencionada na decisão.
Crimes comuns praticados por militares
devem ser julgados pela Justiça comum, como ocorre com todos os outros
cidadãos. Segundo a PF apurou, há indícios apontando “possível
participação/omissão dos militares do Exército Brasileiro, responsáveis pelo
Gabinete de Segurança Institucional e pelo Batalhão da Guarda Presidencial”,
nos atos do 8 de Janeiro. É preciso, portanto, investigar tais indícios.
Embora a decisão de Alexandre de Moraes
seja correta e bem fundamentada, seria muito importante que o colegiado da
Corte a referendasse. É preciso evitar, a todo o custo, a impressão de que o
trabalho do Judiciário relacionado aos atos do 8 de Janeiro estaria baseado
apenas nos entendimentos e posições de um único ministro. O STF tem o dever de
preservar sua autoridade, o que inclui ratificar as medidas corretas e
retificar as extravagantes ou excessivas. A garantia do duplo grau de
jurisdição – o direito de submeter uma decisão judicial a reexame por outro
órgão – deve valer sempre e de forma efetiva.
A autorização para que se investiguem
militares envolvidos nos atos do 8 de Janeiro traz à tona outro caso em
julgamento pelo STF que, apesar de ser uma situação diferente, também trata da
competência da Justiça Militar. Nos últimos anos, o Congresso aprovou leis – em
concreto, a Lei Complementar 136/2010 e a Lei 13.491/2017 – que ampliaram o
conceito de crime militar, com o objetivo de incluir na alçada da Justiça
Militar situações que originalmente eram de competência da Justiça comum; em
concreto, crimes contra civis praticados por militares no exercício de
atividades militares atípicas, como as operações GLOs, de garantia da lei e da
ordem. Corretamente, a Procuradoria-Geral da República (PGR) questionou a
constitucionalidade desses dispositivos, que distorcem o sentido do art. 124 da
Constituição e ferem o princípio republicano da igualdade de todos perante a
lei. Não há ainda data para o caso ser julgado pelo plenário do STF.
Por ocasião da tramitação no Congresso do
texto que deu origem à Lei 13.491/2017, dissemos neste espaço: “Militares não
deveriam realizar o trabalho que cabe apenas à polícia, salvo na vigilância das
fronteiras. Mas já que, de quando em quando, são equiparados pela tarefa à
polícia, que como ela respondam por seus atos na Justiça comum, a mesma dos
demais cidadãos” (Os militares e a segurança pública, 1/8/2016).
Competência judicial é assunto delicado,
que interfere no funcionamento de todo o sistema de Justiça e demanda,
portanto, especial previsibilidade e estabilidade. Cabe ao STF dirimir
rapidamente todas as dúvidas. Justiça Militar é só para crime militar, como
estabelece a Constituição.
Um passo para pacificar o Brexit
O Estado de S. Paulo.
Acordo entre Reino Unido e UE ajuda a
pavimentar pontes entre ambos e a cimentar a paz entre os irlandeses
O premiê britânico, Rishi Sunak, e a
presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, anunciaram um acordo que
desanuviará a questão mais volátil do Brexit: a fronteira entre a União
Europeia (UE) e o Reino Unido. O “Parâmetro de Windsor” facilitará o comércio e
relações políticas mais construtivas – um “novo capítulo”, como ambos
enfatizaram.
A ilha da Irlanda, dividida entre a
República da Irlanda (membro da UE) e a Irlanda do Norte (membro do Reino
Unido), sempre foi problemática para o Brexit. Em 1973, a entrada da República
da Irlanda e do Reino Unido no que seria a União Europeia iniciou um processo
de harmonização das fronteiras entre as Irlandas que culminou com o Acordo da
Sexta-Feira Santa, em 1998, eliminando todas as barreiras. Desde o início do
Brexit havia um consenso, especialmente para a UE, de que o retorno das
fronteiras perturbaria esse processo. Mas era preciso fixá-las em algum lugar.
Pelo “Protocolo da Irlanda”, o Reino Unido deixou o mercado europeu, mas a
Irlanda do Norte permaneceu, criando uma insólita fronteira no interior do
Reino Unido: a Irlanda do Norte seguiu sujeita à jurisdição e às regras da UE,
incluindo impostos e controles alfandegários sobre bens britânicos.
O preço pago para consumar o Brexit gerou
problemas domésticos: muitos comerciantes britânicos deixaram de vender para a
Irlanda do Norte e os brexiteers duros e unionistas da Irlanda do Norte, que
querem a união completa com o Reino Unido, ficaram insatisfeitos – os últimos,
em protesto, deixaram o Executivo da Irlanda do Norte.
O “Parâmetro de Windsor” minimiza as
restrições, criando pistas “verdes” para o comércio entre Reino Unido e Irlanda
do Norte, ainda que os bens destinados à Irlanda e a UE permaneçam adstritos a
pistas “vermelhas”. A Corte Europeia mantém sua jurisdição sobre o comércio
internacional da Irlanda do Norte, mas Londres controlará os impostos. O acordo
confere à Irlanda do Norte um “freio de emergência” caso a UE promova mudanças
alfandegárias substantivas.
O acordo deve ser ratificado pelo
Parlamento britânico, por contar com o apoio da maioria dos conservadores e da
oposição trabalhista. Os brexiteers duros e unionistas seguem insatisfeitos,
mas, mesmo sem corroborar o acordo, podem ser convencidos por Sunak a não se
opor. Os conservadores também, para evitar mais divisões no governo e
prejudicar seu capital eleitoral. Os unionistas deveriam considerar que a
maioria da população da Irlanda do Norte se opôs ao Brexit e quer o fim dos
distúrbios comerciais.
O acordo foi uma vitória do pragmatismo. Se
a UE fez tantas concessões, é porque Sunak se mostrou mais confiável que seus
antecessores. O acordo viabilizará outras pontes, como a participação do Reino
Unido no programa científico europeu Horizon e a cooperação internacional em
controles de imigração e nas concertações para deter a Rússia de Vladimir
Putin.
De resto, seja para os britânicos que querem consumar o Brexit, seja para os que querem revertê-lo, a estabilização das relações com a UE será benéfica para que possam debater suas posições em paz e democraticamente.
Reoneração parcial da gasolina sai com
ajuda da Petrobras
Valor Econômico
A fuzarca em torno de uma simples
desoneração sugere o risco de que seja um método de governo
A novela da desoneração dos combustíveis
pode não ter terminado, mas o enredo foi demasiadamente complicado e repleto de
reviravoltas para um tema simples. Em clima de assembleia, o PT atacou a
reoneração, o ministro da Fazenda a defendeu e o presidente Lula arbitrou a
solução, desta vez mais favorável a Fernando Haddad. O Executivo foi bater às
portas da Petrobras, que reduziu ontem em 3,93% o preço da gasolina. A
reoneração foi parcial e, para não haver perda de arrecadação, será instituído
por quatro meses um imposto de exportação de 9,2% sobre o petróleo cru.
Reajuste de preços dos combustíveis sempre
tem repercussões políticas, e foi por temer perda de popularidade e para
desestimular protestos de opositores, que o presidente Lula não hesitou em
desautorizar o ministro da Fazenda na véspera da posse, ao decidir manter por
dois meses a zeragem de PIS, Cofins e Cide da gasolina e do álcool. A mesma
lógica deveria valer agora, para a presidente do partido, Gleisi Hoffmann, que
está mais preocupada com o consumidor motorizado do que com a autoridade do
responsável pela economia, indispensável para a formação das expectativas
positivas sobre o futuro da economia.
O governo convenceu a Petrobras a reduzir
em 0,13 centavos por litro o preço da gasolina, fazendo com que o imposto fosse
elevado em 0,47 centavos por litro - recomposição próxima a 70%. Com a
reoneração total, ele voltaria a ser de 0,69 centavos. Para o etanol, o ajuste
foi marginal, de 0,02 centavos. Com isso, mais o imposto de exportação, Haddad
prevê que os R$ 28,8 bilhões previstos de receitas com gasolina e álcool estão
garantidos.
Os efeitos sobre a inflação serão menores
que os 0,5 ponto a 0,7 ponto calculados com a volta integral dos tributos,
situando-se agora entre 0,3 e 0,5 ponto percentual. Para o ano, no entanto, os
investidores e analistas já haviam incluído a recomposição total, de forma que
a expectativa, que gira ao redor de 5,8%, não foi alterada. O hiato de tributos
será parcialmente coberto com receitas do imposto de exportação, estimadas em
R$ 6,7 bilhões.
A discussão das medidas teve lances
inusitados. Indicado para presidir a Petrobras, o ex-senador petista Jean Paul
Prates fez palestra na federação das indústrias do Rio Grande do Norte e
desqualificou como “exorbitantes” os lucros da estatal, feito provavelmente
inédito entre os candidatos a dirigi-la. Ele também duvidou da eficiência da
empresa ao cortar o número de funcionários de 70 mil para 38 mil.
Os préstimos da Petrobras foram um ato de
cortesia, talvez o último em que a estatal tenha exercido seu poder. A política
de preços vai mudar e o novo presidente já deixou claro que esse é um assunto a
ser decidido só pelo governo. Da última vez que o foi, na gestão de Dilma
Rousseff, os resultados financeiros da empresa foram desastrosos - buscavam
artifícios para conter uma inflação que já havia saído de controle.
Outro feito do passado, que pode se
repetir, é o investimento pesado em refinarias. Nos governos petistas
anteriores, houve explosão de custos, favorecimento de empreiteiras e corrupção
generalizada. Na palestra, Prates qualificou o petrolão, o maior escândalo da
história recente do país, de “cooptação” da estatal “por “cartéis”, sem
mencionar a participação dos companheiros de partido.
As escaramuças sobre a desoneração são
episódios menores diante das incertezas sobre os rumos da Petrobras. Prates é
autor de projeto aprovado pelo Senado que cria um fundo de estabilização,
balizado por bandas de flutuação de preços definidos pelo governo. O projeto
está parado na Câmara e sua aprovação não é certa. A revogação da PPI e do
alinhamento automático aos preços internacionais, na ausência de um novo marco,
poderá devolver o arbítrio do Executivo no comando da estatal.
Haddad não discorda das mudanças de
orientação na Petrobras. Sua preocupação é mais focada e imediata: não abrir
mão de receitas. O ministro previu que seria possível encerrar o ano não com o
déficit primário previsto de R$ 231 bilhões, e sim com algo em torno de R$ 100
bilhões, o que a esta altura seria um bom resultado para a Fazenda, analistas e
investidores. Não há unanimidade sobre isto no governo.
Um dos testes decisivos será o novo regime fiscal, que definirá os rumos das contas públicas e da economia nos próximos quatro anos. A fuzarca em torno de uma simples desoneração sugere o risco de que seja um método de governo. Está longe de ser certo que Haddad obtenha aval para um desenho fiscal relativamente austero e coerente.
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