segunda-feira, 30 de outubro de 2023

Sergio Lamucci - A mudança da meta e a credibilidade do arcabouço

Valor Econômico

Alterar o alvo para as contas públicas em 2024 afeta a percepção sobre a nova regra fiscal, já questionada pela dependência excessiva de receitas incertas

O novo arcabouço fiscal recebeu um golpe importante na sexta-feira, com a afirmação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva de que a meta do resultado primário de 2024 não precisa ser zero. Além de afetar os esforços do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, de tentar conseguir do Congresso receitas para zerar o rombo do governo central no ano que vem, a declaração de Lula tem o potencial de causar estragos na credibilidade da nova regra.

O arcabouço já tem sido questionado por depender de um crescimento expressivo e incerto da arrecadação, necessário para bancar o aumento das despesas sempre acima da inflação, de 0,6% a 2,5% ao ano. Agora, o presidente indica que deve prevalecer a vontade do PT e da ala política do governo, resistentes a cortes de gastos no ano que vem.

A equipe econômica definiu para 2024 a meta de zerar o resultado primário (receitas menos despesas, exceto gastos com juros) do governo central, com o número podendo ficar dentro de uma banda de tolerância, que varia de um déficit de 0,25% do PIB a um superávit de 0,25% do PIB.

Para o economista-chefe do Citi Brasil, Leonardo Porto, mudar a meta de déficit primário zero em 2024 seria um sinal muito ruim, com potencial para afetar preços dos ativos brasileiros. O primeiro ponto é o da credibilidade do novo arcabouço fiscal, aprovado neste ano, diz ele. Haveria uma alteração importante sem que a nova regra fosse nem ao menos testada. “Se abrir mão da meta logo de cara, começa ferindo a credibilidade do arcabouço”, afirma Porto.

Se o alvo de 2024 for abandonado ainda neste ano, haveria um sinal de falta de comprometimento com o esforço fiscal, na visão do economista do Citi. O cumprimento da meta é considerado difícil pelos especialistas em contas públicas, que projetam um déficit um pouco inferior a 1% do PIB para o ano que vem. Mas seria melhor tentar cumpri-la, mostrando disposição para obter receitas adicionais com o Congresso e segurando gastos.

Porto lembra que o arcabouço tem mecanismos automáticos de ajuste. Se a meta de 2024 não for cumprida, as despesas só poderão crescer a um ritmo de 50%, e não de 70%, da variação das receitas. Além disso, há bloqueios de gastos a serem feitos nos momentos de avaliação do comportamento das contas públicas. Especialistas consideram que será necessário um contingenciamento das despesas de pouco mais de R$ 50 bilhões no começo do ano que vem, se houver a manutenção da meta de zerar o déficit do governo central.

Para o economista do Citi, mudar já o alvo de 2024 tende a indicar uma falta de comprometimento com o esforço fiscal não apenas do ano que vem. Se essa meta for alterada, há potencialmente uma mudança também na percepção do compromisso em relação aos anos seguintes, avalia Porto. Isso pioraria a trajetória esperada para a dívida pública como proporção do PIB, que já aponta um crescimento contínuo nos próximos anos. Pelo consenso de mercado do Boletim Focus do Banco Central (BC), a dívida bruta, que ficou em 74,4% do PIB em agosto, encerrará este ano em 76,05% do PIB e alcançará 87,4% do PIB em 2032, último ano para o qual há estimativas disponíveis. Se optar por afrouxar a meta fiscal de 2024 e dos anos seguintes, as estimativas para essa trajetória tendem a piorar.

Um ponto a ser considerado é que o Brasil tem contas externas sólidas, a começar pelas reservas internacionais, na casa de US$ 344 bilhões. O país recebe ainda um volume expressivo de investimentos estrangeiros diretos, que alcançaram 3,21% do PIB nos 12 meses até agosto, cobrindo com folga o déficit em conta corrente (o resultado das transações com o exterior de bens, serviços e rendas), de 2,21% do PIB nesse período. Essa situação é um trunfo importante, que torna o país menos vulnerável a aumentos na aversão global ao risco, que ocorrem num cenário de elevação dos juros dos títulos do Tesouro americano de longo prazo, como o atual. A solidez das contas externas também leva parte dos investidores estrangeiros a relativizar um pouco os números fiscais do Brasil, ainda que a dívida bruta do país seja maior que a média dos emergentes, de 68,3% do PIB neste ano, segundo o Fundo Monetário Internacional (FMI).

Esses fatores não justificam, porém, afrouxar a política fiscal, abandonando a meta de zerar o déficit em 2024. O novo arcabouço já tem problemas, como a dependência de receitas que podem não se concretizar, além de não indicar a estabilização da dívida bruta como proporção do PIB nos próximos anos. O que a nova regra fez foi afastar riscos mais extremos e imediatos para as contas públicas. Mas se o governo desistir precocemente da meta, isso poderá afetar os preços dos ativos brasileiros, como diz Porto. Num cenário em que os juros dos títulos de 10 anos do Tesouro dos EUA estão próximos de 5% ao ano, isso pode colocar mais pressão sobre o câmbio, por exemplo, piorando as perspectivas para a inflação e, com isso, reduzindo o espaço para o BC cortar os juros nos próximos meses, hoje em 12,75% ao ano. Mudar a meta agora tende a ser contraproducente, podendo prejudicar o ritmo de crescimento da economia, elevar a inflação e impedir o alívio maior das despesas financeiras do setor público.

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