terça-feira, 21 de novembro de 2023

Míriam Leitão - As promessas de Javier Milei

O Globo

Acabar com o Banco Central argentino parece sem sentido, mesmo para quem acha possível a dolarização da economia

O banco central tem outras funções além de ser a autoridade monetária. Mesmo um país que não tenha moeda própria, permanece tendo um banco central para cuidar das atribuições legais de supervisão bancária e financeira. É por isso que os países da União Europeia, que abriram mão de ter moeda própria em favor do euro, mantiveram o órgão para a supervisão, como a Alemanha e a Itália. A ideia de acabar com o Banco Central da Argentina parece sem sentido, mesmo para quem acha que a dolarização sem dólar é possível.

A dolarização envolveria transformar todos os contratos da economia numa espécie de dólar argentino que equivaleria a um dólar americano. Mas a primeira dificuldade é em que taxa de câmbio os ativos em peso se transformariam em dólar? Hoje há várias taxas na Argentina e no câmbio livre o peso é mais desvalorizado. Dessa escolha dependerá a dimensão da perda de valor de ativos e da riqueza argentina.

Além disso, como é possível dolarizar sem ter dólar físico? O que os especialistas dizem é que se for bem feita, pode, em tese, provocar uma onda de repatriação dos dólares de argentinos. Mas isso só se o plano inspirar confiança. A mudança poderia tornar muito atrativo para argentinos levarem de volta ao país o dinheiro que têm no exterior. Essa atratividade seria tanto maior quanto maior for a taxa de desvalorização do peso.

Há economistas que enxergam um caminho para a Argentina, mas com o risco de o país deixar de ter autonomia para fazer política monetária. No processo de implantação há muitas complexidades. Mesmo os que acham que é possível fazer, dizem que o governo ainda não explicou como o fará, por isso é difícil dizer se é viável ou não.

A ideia sedutora de que haveria uma forma simples de acabar com a inflação atraiu os eleitores argentinos que querem se livrar de uma moeda que perde valor rapidamente. Mas o que existe até agora na Argentina é uma enorme incerteza sobre o que vai acontecer no governo Javier Milei.

Ele usou a estratégia de dar declarações bizarras, durante a campanha, como a de que ele pedia conselhos ao seu cachorro morto, na expectativa de que os eleitores falassem das bizarrices, em vez de perguntar sobre as propostas. É uma fórmula que a extrema direita usou com sucesso em vários países do mundo. Assim, captura-se a atenção da opinião pública para algum não-assunto e o candidato não precisa aprofundar as suas propostas.

Ontem o mercado comemorou com altas estratosféricas em alguns papeis argentinos em Nova York, como as ações da YPF que subiram quase 40%, empresa que ele prometeu privatizar. Isso provavelmente ocorrerá, avalia o ex-diretor da ANP David Zylberstajn, porque a empresa de petróleo argentina já foi privatizada e reestatizada. Outros especialistas também acham que ele cumprirá essa promessa até porque esse pode ser um sinal forte a indicar que seguirá as promessas liberais que fez.

A YPF é apenas uma fração da Petrobras e oscilou muito de tamanho na sua história. A Yacimientos Petrolíferos Fiscales, fundada em 1922, foi privatizada nos anos 1990 pelo governo peronista de Carlos Menem. Ficou sob o comando da Repsol. Em 2012, foi novamente estatizada no governo de Cristina Kirchner. Hoje produz 520 mil barris/dia, 21% do que a Petrobras produz e, no ano passado, suas reservas chegaram a 1,2 bilhão de barris, pouco mais de um décimo das reservas provadas da petroleira brasileira.

Décio Odonne, que foi diretor da ANP e hoje preside a Enauta, conta que em termos de produção a empresa oscilou muito. Já chegou a produzir 600 mil barris diários, nos anos 1990 e, entre 2010 e 2011, caiu para 150 mil. Só em 2020 entrou em rota de recuperação. A ação da empresa já chegou a valer US$ 60 na Bolsa de Nova York, no início de 2000, caiu muito e chegou a US$ 4 dólares há um ano. Depois voltou a subir para em torno de US$ 15.

Oddone alertou que no caminho da privatização da empresa é necessário tomar algumas medidas como a de acabar com o forte subsídio na área de energia, nos preços de diesel, gasolina e gás.

—Macri tentou fazer um ajuste gradual nisso e não conseguiu. Milei propõe uma mudança drástica.

A Argentina é um país rico, tem abundantes recursos naturais e está com seus papeis baratos por causa de prolongada crise. Por isso o mercado se animou tanto ontem. Contudo, ninguém sabe como Milei cumprirá suas promessas.


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