O Globo
Para defender a democracia também precisaremos dar atenção aos danos que a narcomilícia produz no tecido da sociedade civil
Cidade colonial e Corte de um Império
escravocrata, o Rio de Janeiro produz um tipo peculiar de segregação urbana,
que faz das favelas uma forma racializada de configuração urbana, por isso
mesmo fartamente instrumentalizada como antítese da cidade, um lugar habitado
por um “outro”, contra o qual se opõe um ideal de cidade europeia e branca. A
esse passivo histórico, devemos a crônica estigmatização da favela, que
sustenta toda sorte de violência contra a sua população: da privação de
saneamento à exposição a grupos armados paramilitares e às repetitivas
incursões policiais, que em nada alteram esse quadro, mas que deixam um triste
saldo de mortes e de traumas.
Para superarmos esse passado e imaginarmos um outro futuro, um primeiro passo é reconhecer que os que mais cultivam a democracia na cidade estão nas favelas e periferias. Mais especificamente, em seus coletivos e organizações que, há décadas, e cotidianamente, vêm lutando pelo direito a vida, educação, saúde, saneamento, cultura e outros direitos urbanos. Um segundo passo é reconhecer que são justamente eles os mais ameaçados pela simbiose em curso entre milícia e narcotráfico.
Diante desses grupos que controlam o acesso a
bens de consumo nas favelas (inclusive a habitação) e que reúnem grande poder
armamentista e penetração no sistema político, as trincheiras de defesa da
cidade democrática no coração das favelas tendem a ficar cada vez mais
vulneráveis. Daí que o cerco à narcomilícia não deva se reduzir ao necessário
trabalho policial, que tem avançado com a bem-vinda participação da Polícia
Federal. Para defender a democracia, também precisaremos conferir atenção
especial aos danos que a narcomilícia produz no tecido da sociedade civil.
Historicamente, o Rio vem construindo redes
envolvendo universidades, instituições de pesquisa e organizações de favelas e
periferias. É relevante que, recentemente, Faperj e Fiocruz venham abrindo
editais voltados para tais organizações. A isso se juntam trabalhos já sólidos
de inúmeras organizações, de que são bons exemplos a Casa Fluminense, a Redes
da Maré, o Grupo ECO Santa Marta, o Instituto Maria e João Aleixo e uma gama
diversa de iniciativas como o Dicionário de Favelas Marielle Franco, o Plano do
CPX, a Expo Favela e o recém-criado Centro de Pesquisas PUC-Rio – Rocinha
(Unir).
Essas organizações e iniciativas, e muitas
outras não citadas, evidenciam que o Rio dispõe de um consistente capital
social e político, formado em torno de redes horizontais, que vivificam o
compromisso com a universalização do direito aos bens de cidade e que
contribuem para romper com a segregação urbana derivada do estigma da favela.
Mas é preciso investir mais na sinergia entre essas ações e apostar em seu
caráter estratégico. Fortalecidas, essas redes contribuem para a agenda
antirracista e erguem barreiras simbólicas e políticas em face da expansão da
narcomilícia que, com sua lógica mafiosa de extração de lucro e concentração de
poder, afronta a cidade e a democracia.
* Marcelo Baumann Burgos é professor no Departamento de Ciências Sociais da PUC-Rio
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