O Globo
A esta altura do campeonato, ninguém em sã
consciência diria que ainda há risco de golpe de Estado no Brasil. Jair
Bolsonaro está inelegível, as sucessivas operações da Polícia
Federal e as sentenças de Alexandre
de Moraes extirparam os golpistas do cenário político, os sinais da
caserna são de calmaria.
Mesmo assim, sobram interrogações sobre o que
se deu no interior das Forças
Armadas no governo passado e sobre como se permitiu que chegássemos
tão perto de uma ruptura institucional.
Algumas perguntas começam a ser respondidas com as revelações da operação sobre o ex-presidente, seus ministros militares e outros 13 oficiais envolvidos no planejamento do golpe. O pouco que veio à tona, porém, foi suficiente para demonstrar quão profundo é o baú de segredos dos militares.
Fica patente no enredo traçado pela PF que
uma das razões por que a “virada de mesa” não prosperou foi a resistência de
dois comandantes em aderir a ela — o general Freire Gomes, que Walter
Braga Netto chama de “cagão” nas mensagens captadas pela PF, e o
brigadeiro Carlos Baptista Júnior, a quem os golpistas se referem como “
traidor da pátria”.
Está bem documentado também que os homens de
confiança de Bolsonaro orquestraram uma onda de assédio digital para intimidar
os “melancias”, assim batizados porque, dizia-se, eram “verdes
por fora e vermelhos por dentro”.
Tais episódios, contudo, estão na superfície
da engrenagem golpista. Os próprios delegados da PF admitem, na representação
em que pedem o aval de Moraes para as buscas e prisões, que falta saber
exatamente como foram as conversas entre Bolsonaro e esses comandantes.
Primeiro porque, embora esteja claro que eles
resistiram ao golpismo, não está descartada a hipótese de omissão. Depois para
saber até que ponto foram os militares que resistiram e até que ponto foi
Bolsonaro quem deu para trás em seu arroubo autoritário.
Essa dubiedade permeou a relação do
ex-presidente com os comandantes militares ao longo de todo o seu governo, e
não seria exagero dizer que fomentou a crença de que se poderia dar um golpe
caso ele perdesse as eleições.
Em março de 2021, o ministro da Defesa e general Fernando Azevedo deixou o governo depois
de se recusar a apoiar um estado de sítio ou de defesa, num episódio que levou
à demissão conjunta dos três comandantes das Forças Armadas.
Antes, porém, o mesmo Azevedo havia
sobrevoado com Bolsonaro uma manifestação contra a “ditadura do STF”
e a favor de intervenção militar, num helicóptero do Exército, em ato de clara
intimidação ao Supremo, na época em conflito com o Planalto em torno da reação
à Covid-19.
Meses depois, o então general da ativa
Eduardo Pazuello subiu ao palanque de um comício com o presidente da República,
num ato de flagrante desobediência ao estatuto dos militares. Mas o comandante
Paulo Sérgio Nogueira se recusou a puni-lo, no que ficou subentendido como um
“liberou geral” para a tropa se enfronhar na política.
Quando a CPI da Covid avançou na apuração
sobre suspeitas de corrupção envolvendo Pazuello e outros oficiais na
negociação para a compra de vacinas, o brigadeiro Baptista Júnior deu
entrevista ao GLOBO em tom de ameaça, dizendo
que não toleraria “ataques levianos” às Forças Armadas.
O mesmo Freire Gomes que resistiu ao golpismo
assinou uma nota conjunta de comandantes com críticas ao Judiciário e se
recusou a reprimir os acampamentos na porta dos quartéis depois da eleição.
Até hoje, pouco ou nada se sabe a respeito do
que se passou nas entranhas do Exército nesses e noutros episódios cruciais
para a História do país. Ao assumir, Lula apostou na pacificação e nomeou o
comandante do Exército por antiguidade, mesmo avisado de que as conexões do
general Júlio Cesar Arruda com o bolsonarismo poderiam causar problemas.
O presidente também sufocou iniciativas da
esquerda para cortar privilégios e restringir legalmente a ação política dos
militares. E, apesar de ter sido obrigado a demitir Arruda por sua conduta
durante o 8 de Janeiro, virou lugar-comum dizer que, dados os riscos que
corríamos, Lula não tinha outra alternativa a não ser a acomodação sem ruídos.
É uma hipótese. Mas, enquanto não se souber ao certo o que ocorreu nos bastidores da relação de Bolsonaro com as Forças Armadas, nunca poderemos medir quão legalistas foram nossos militares e quanto dependemos do Supremo para conter o golpismo. Os golpistas podem até ser condenados e presos, mas um capítulo importante da História permanecerá nas sombras.
3 comentários:
Perfeito.
O capítulo do capitão mentiroso e criminoso! Excelente!
Pois é.
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