quinta-feira, 15 de fevereiro de 2024

Míriam Leitão - A disputa não é entre Lula e Lira

O Globo

O poder excessivo do Congresso não é um complicador apenas para o governo atual. Irá constranger qualquer outra administração

É fácil imaginar que este primeiro semestre legislativo será tenso na relação com o executivo, principalmente na pauta econômica. Há muitas matérias importantes e o presidente da Câmara, Arthur Lira, só tem a ganhar mantendo o clima estressado. Já conseguiu nomeações no governo e agora está preparado para derrubar o veto a R$ 5,6 bilhões de emendas de comissão. É quase certo que será derrubado, porque isso representará mais recursos para o Congresso administrar e elevará o cacife de Lira para fazer seu sucessor. Esse poder excessivo do Congresso é um complicador para o país, não apenas um problema do governo Lula.

Os amuos e as declarações irritadas do presidente da Câmara são parte desse show para garantir mais benefícios e mais força interna na Casa. Ele não irá ao ponto de derrubar pautas como a regulamentação da Reforma Tributária, porque ele quer manter a fantasia de líder liberal e reformista que vestiu para falar com o mercado financeiro no ano passado. Mas pode desidratar cada proposta.

O ponto mais difícil para o governo será o da desoneração da folha , em que errou no ano passado ao não negociar uma saída para o assunto. A proposta avançou no Congresso, sem envolvimento do Planalto. Quando a prorrogação do benefício aos 17 setores que empregam mais foi aprovada, o governo vetou. O veto foi derrubado com uma votação muito eloquente. Mesmo assim, a equipe econômica dobrou a aposta e fez uma medida provisória reinstituindo a cobrança do imposto previdenciário. Terá que negociar uma saída.

Mas o grande nó é a dimensão a que chegaram as emendas parlamentares. Neste caso, o aumento quantitativo das emendas produz uma mudança qualitativa. Num país que tem um volume tão pequeno de despesas discricionárias, ter mais de R$ 50 bilhões nas mãos do Congresso é uma distorção federativa.

Lira disse que o “orçamento da União pertence a todos e todas e não apenas ao executivo”. Parece ter razão e não tem. Evidentemente, os recursos públicos são dos contribuintes em geral, mas a prerrogativa de executar o orçamento é do executivo. Até porque se a política pública não tiver bom desempenho quem responde por isso é o governo. No parlamentarismo, se algo der errado cai o primeiro-ministro e todo o gabinete. No presidencialismo, não há punição para um Congresso que administra mal os recursos orçamentários.

Para piorar, está se formando nas emendas de comissão a mesma falta de transparência que produziu o orçamento secreto. Não saber quem define a despesa pública é uma aberração, que já foi condenada pelo STF.

Como O GLOBO mostrou recentemente, esse percentual tão alto de recursos do orçamento administrado pelo Congresso não tem paralelo no mundo. Em todos os países democráticos há emendas de parlamento, mas não nessa proporção. Em 2014, 4,65% das despesas não obrigatórias estavam sob controle do Congresso. Isso foi subindo ano a ano e deu um salto para 28,6%, em 2020. Agora ficará em torno de 20%, se for mantido o veto do presidente Lula. Em valores, superou R$ 50 bilhões, com um salto exatamente em emendas de comissão. Eram de R$ 6,8 bi no ano passado, e o Congresso elevou para R$ 16,6 bilhões, em 2024. Foi nessa modalidade de emendas que o presidente aplicou seu veto de R$ 5,6 bilhões. O veto faz todo o sentido e deveria ser mantido.

Isso hoje atrapalha o governo Lula. Amanhã vai constranger qualquer outra administração. Se continuar esse aumento progressivo, o país ficará com a governabilidade cada vez mais difícil. Portanto é preciso entender esse debate não como uma briga entre Lula e Lira, mas entre manter a capacidade do governo de administrar o orçamento e as distorções que estão agravando a crise de governabilidade do país.

Há vários outros riscos para a agenda econômica. Um deles é o Congresso ceder aos interesses dos setores na regulamentação da reforma tributária. Ela, que foi tão comemorada, pode perder consistência. Os lobbies da mineração e do petróleo já estão querendo reduzir o peso do imposto seletivo que recairá sobre eles, pelo impacto negativo que têm no meio ambiente. Outras pressões vão aumentar. O governo precisará manter uma grande capacidade de diálogo e atenção a todos os riscos na tramitação da agenda econômica. O governo passado deixou várias bombas armadas. Muitas delas foram desarmadas no ano passado. Mas 2024 começa com novas dificuldades.

2 comentários:

Daniel disse...

Excelente!

ADEMAR AMANCIO disse...

Excelente!