quinta-feira, 15 de fevereiro de 2024

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

Carnaval aponta caminho para negócios no Brasil

O Globo

País tem vocação evidente e potencial enorme a explorar com as indústrias criativas

Oficialmente, o carnaval acabou na terça-feira, mas, para prefeituras e estados, o clima ainda é de comemoração. Com tempo ensolarado na maior parte do país, o evento foi um sucesso, traduzido em ruas apinhadas de foliões, atrações sedutoras, hotéis lotados, serviços a todo vapor e arrecadação garantida. A indústria criativa mostrou seu vigor e deixou claro que carnaval não é só diversão. É também um ótimo negócio.

Em 2021 e 2022, a festa sofreu o baque da pandemia. A recuperação iniciada em 2023 se consolidou na festa deste ano. Antes da folia, a Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC) estimara que os festejos enfim superariam os níveis pré-pandemia, em especial nos estados que têm o carnaval como atração turística. Mas o carnaval tem o mérito de fazer girar várias rodas da economia. No Rio, o desfile da Portela, inspirado no livro “Um defeito de cor”, de Ana Maria Gonçalves, fez esgotar os volumes da obra após a apresentação. Mesmo aqueles que fogem da folia contribuem para movimentar o turismo em seus destinos mais pacatos.

São Paulo é provavelmente o estado que mais gerou negócios com a festa. A Secretaria de Turismo previu que a movimentação financeira alcançaria R$ 5,72 bilhões, a maior dos últimos cinco anos. As autoridades estimam que 4,4 milhões de turistas tenham prestigiado a festa nos municípios paulistas. A força da folia ficou patente na profusão de blocos e atrações musicais de peso. No Rio, a Prefeitura estimou uma injeção financeira de R$ 5 bilhões em serviços e 7 milhões de foliões durante todos os dias de festa. A Riotur falou em 1,2 milhão apenas no megabloco Fervo da Lud, recorde de público.

É verdade que há exagero nas estimativas de multidões — é frequente elas serem desmentidas por softwares que contam cabeças em fotografias aéreas. Mas isso em nada desmerece a animação daqueles que enfrentaram a temperatura de 41 °C para seguir o cortejo que Ludmilla se viu obrigada a interromper mais cedo em razão do calor. No Sambódromo lotado, a iluminação cênica — pela primeira vez usada em larga escala — proporcionou apresentações inovadoras e marcantes.

Salvador, com 12 dias de folia, abrigou uma sucessão de trios, blocos e shows. A Prefeitura estimou reforço de R$ 2 bilhões na economia do município. Segundo a Secretaria de Comunicação, o investimento neste carnaval superou em 30% os anteriores. A expectativa era atrair mais de 1 milhão de turistas. Os números superlativos ficavam evidentes nas multidões que tomaram os principais circuitos carnavalescos da capital baiana. Recife e Olinda também mantiveram a tradição do carnaval de rua e reuniram cortejos desde as primeiras horas da manhã.

O sucesso do carnaval sugere um caminho para o Brasil. Há vocação evidente para indústrias criativas e potencial enorme ainda a explorar em hotéis, transportes, bares, restaurantes, comércio etc. Tais negócios geram emprego e renda a um sem-número de profissionais que trabalham direta ou indiretamente com o carnaval — alguns o ano inteiro, como os artistas que confeccionam fantasias e alegorias das escolas de samba. Evidentemente, o poder público precisa prover segurança e infraestrutura. Mas, a despeito de problemas pontuais, as cidades passaram no teste. O carnaval de 2024 mostrou que é possível se divertir e lucrar com uma indústria que vende alegria.

Fuga deve servir para aperfeiçoar prisões de segurança máxima

O Globo

Apesar da evasão de Mossoró, elas têm sido eficazes, provando papel do governo federal no combate ao crime

A fuga de dois presos da Penitenciária Federal de Mossoró, no Rio Grande do Norte, exige duas ações urgentes e concomitantes: a captura dos criminosos e uma varredura para determinar as falhas que a permitiram. Os outros quatro presídios federais de segurança máxima (em Brasília, Campo Grande, Porto Velho e Catanduvas) precisam reforçar a atenção para frustrar tentativas semelhantes. “Nenhum sistema é infalível”, diz Renato Sérgio de Lima, diretor-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. “As falhas devem ser identificadas para evitar que se repitam.”

A construção de penitenciárias administradas pelo governo federal para receber os presos mais perigosos, sobretudo líderes do crime organizado, é exemplo de política bem-sucedida na área da segurança pública. Prova disso é que a fuga em Mossoró é a primeira desde que os dois primeiros presídios foram inaugurados, em 2006. Nunca houve registro de motins ou rebeliões.

Com capacidade para 208 detentos, Mossoró tinha 68, segundo dados de 2023. O contraste com a superlotação nos presídios estaduais é gritante. Atualmente, a ocupação das cinco prisões federais está em 47%. O total de presos (489) é menos da metade dos policiais responsáveis pela vigilância.

Estrutura e procedimentos foram pensados para garantir a segurança. Os detentos ficam em celas individuais de 6 metros quadrados, sem televisão, rádio ou comunicação. São revistados sempre que saem delas. As visitas se comunicam por parlatório ou videoconferência. Todo deslocamento envolve pelo menos dois agentes e é monitorado por circuito interno. De tempos em tempos, os presos mudam de presídio para dificultar planejamento de fugas.

O perfil dos presos exige tais cuidados. São líderes das maiores facções criminosas do país. Metade cumpre pena superior a 30 anos, e 70% ainda têm mais de 15 anos a cumprir. São em geral condenados por homicídio qualificado, associação para o tráfico de drogas e latrocínio. No ano passado, os federais desbarataram planos para libertar um dos líderes do PCC. Uma possibilidade era sequestrar autoridades penais e seus familiares. Outra era invadir a penitenciária de segurança máxima. Uma terceira alternativa, uma rebelião tomando um agente como refém. Tentativas semelhantes foram desbaratadas desde a criação do sistema federal no primeiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Seria, por isso, um erro considerar a fuga de Mossoró evidência de que as prisões federais de segurança máxima estejam comprometidas. Mudanças recentes na liderança de facções criminosas sugerem, ao contrário, que elas têm funcionado ao isolar criminosos, desafiando o padrão frequente de detentos comandando da cadeia impérios do crime. O êxito delas demonstra como é essencial o envolvimento do governo federal no desafio de derrotar facções criminosas e promover a segurança pública. A fuga prova apenas que as prisões precisam ser aperfeiçoadas — e, idealmente, ampliadas para o Estado dispor de meios mais eficazes no combate ao crime organizado.

Eleição de Bukele em El Salvador envia recados à AL

Valor Econômico

Sucesso eleitoral de Bukele sugere que, levada ao extremo da violência, população optou pela segurança em detrimento do Estado de direito e talvez até da democracia

El Salvador é um pequeno país da América Central e raramente se sobressai no noticiário internacional. Mas a reeleição do populista Nayib Bukele como presidente envia alguns recados importantes ao restante da América Latina. Bukele obteve um segundo mandato com incríveis 85% dos votos na contagem preliminar. Mais impressionante ainda, o seu partido, o Novas Ideias, pode ficar com 58 das 60 cadeiras na Assembleia Legislativa, ou seja, a quase totalidade do Congresso unicameral salvadorenho.

Esse sucesso é fruto do polêmico programa de combate à criminalidade de Bukele, que reduziu a taxa de homicídios no país de 107 por 100 mil habitantes em 2015, uma das altas do mundo, para 7,8 no ano passado, uma das mais baixas da América Latina. A oposição contesta o dado oficial, mas o triunfo eleitoral esmagador certamente indica que a população percebe uma melhora significativa na segurança pública.

O problema é que a redução da criminalidade foi feita por meio de uma política fortemente repressiva combinada a um estado de exceção. Segundo a ONG Anistia Internacional, houve milhares de detenções arbitrárias, sem acusação formal e sem a instauração do devido processo legal, uso sistemático de tortura e violação de direitos civis e humanos em larga escala. As detenções em massa, que obrigaram a construção de novos grandes presídios, fizeram o país ter hoje a mais alta taxa do mundo de pessoas presas em relação à população, superando 1,1%. É como se o Brasil tivesse mais de 2,3 milhões de presos, e não os cerca de 650 mil atuais.

O descaso legal não se limitou à segurança. A Constituição salvadorenha não permite a reeleição, mas Bukele obteve uma decisão da Corte Constitucional, cuja maioria ele controla, pela qual poderia se recandidatar desde que se licenciasse do cargo seis meses antes. Mas o sucesso eleitoral de Bukele sugere que, levada ao extremo da violência, a população do país optou pela segurança em detrimento do Estado de direito e talvez até da democracia. Esse é um risco muito grave que pesa sobre toda a América Latina, de longe a região mais violenta do mundo.

É fundamental que os governos da região melhorem o combate à criminalidade, sob risco de surgirem outros Bukeles - o original já se descreveu, de modo supostamente irônico, como “o ditador mais ‘cool’ do mundo”. Já há sinais de que isso está acontecendo. Em Honduras, o governo vem usando medidas de estado de emergência para combater o crime organizado. Há forte pressão no Peru e no Equador para que garantias constitucionais sejam suspensas para enfrentar a criminalidade. Javier Milei parece ter captado essa onda com propostas de ampliar a repressão à violência (e aos protestos) na Argentina.

A inevitabilidade da pena, isto é, a percepção de que você tem uma grande chance de ser pego e condenado se cometer um crime, constitui um dos principais fatores de inibição da criminalidade. Países pouco violentos costumam ser aqueles que, num prazo razoável, identificam, processam e julgam os acusados. A sensação de que a Justiça tarda ou de que é provável evadi-la estimula o crime. O que Bukele fez foi gerar, de modo arbitrário, essa sensação da punição. Sua polícia prendeu dezenas de milhares de suspeitos sem investigação adequada, e o Judiciário salvadorenho permite que essas pessoas fiquem detidas indefinidamente, em condições degradantes, sem o devido processo legal. O recado ao cidadão foi: ande na linha ou prendemos você quando e como quisermos. Isso é característico de um regime autoritário.

A violência e a criminalidade são fenômenos complexos, com uma multitude de causas, e exigem um leque amplo de respostas por parte do Estado, que vão da repressão a políticas sociais, de educação e de saúde. A oposição em El Salvador diz que o plano de Bukele não é sustentável no longo prazo, pois, entre outros problemas, tem um custo muito elevado, não propõe alternativas a uma parte da população seduzida pelo crime e gera milhares de famílias desestruturadas, o que semeia pobreza e violência no futuro. Mas, ainda que a repressão não seja a resposta única, em muitos países da região há uma pressão popular para que mais (e melhores) ações policiais e judiciais sejam adotadas, que proporcionem algum alívio de curto prazo ao problema da segurança, já que políticas sociais tendem a funcionar mais em médio e longo prazos. Nesse caso, é importante que essas medidas sejam aprovadas e executadas dentro do marco legal.

Para quem apoia a linha-dura arbitrária de Bukele, inclusive parte do meio empresarial local, há uma má notícia. A economia de El Salvador, parcialmente dolarizada, é a que menos cresce na América Central e não digeriu a criticada adoção do bitcoin como meio de pagamento corrente. Há uma crise nas finanças públicas. Certamente há fatores conjunturais por trás desse mau desempenho, mas é muito provável que o mesmo comportamento arbitrário esteja afastando o capital. Afinal, um governo que ignorou a Constituição para prender pessoas sem amparo legal e para poder se reeleger pode ignorá-la em qualquer situação. E, como é amplamente sabido, incertezas e insegurança jurídica são fortes inibidores de investimento privado.

A violência é um dos principais fatores que inibem o desenvolvimento econômico da América Latina, como já constatou até o Fundo Monetário InternacionaI. Mas o combate a essa violência, ainda que duro, não pode escapar ao Estado de direito. Essa tarefa é difícil, mas possível.

Investimento externo cai, o que preocupa

Folha de S. Paulo

Brasil, que recebeu 17% a menos em 2023, deve se posicionar para cenário global de recuperação; reforma tributária será passo importante

O Brasil atraiu US$ 62 bilhões em investimentos estrangeiros diretos em 2023, 17% a menos que no ano anterior, segundo dados recém-divulgados. Seria prematuro concluir que o país se tornou menos atrativo, mas o sinal não deixa de ser preocupante diante de um quadro global ainda pouco favorável.

Segundo dados da Unctad, agência das Nações Unidas para comércio e desenvolvimento, os investimentos diretos —fusões, aquisições, novas instalações, reinvestimento de lucros e outras operações voltadas à atividade produtiva— entre países cresceram 3% no ano passado, para US$ 1,37 trilhão.

À primeira vista, o resultado parece positivo diante de tensões geopolíticas em alta e também dos riscos até agora não confirmados de recessão global. A abertura dos números, porém, mostra uma situação menos confortável.

Descontado o aumento em países europeus usados mais como intermediários de transações, como Holanda e Luxemburgo, o resultado é uma queda de 18%.

Todas as principais regiões mostraram menos vigor, porém chama a atenção a piora relativa da União Europeia, com recuo de 23%, e de países em desenvolvimento, que atraíram 9% a menos.

Mas nota-se no mundo maior foco em áreas que são objeto de intervenções governamentais motivadas pela busca de mais segurança nas cadeias de produção. Setores manufatureiros, como automóveis, maquinário, telecomunicações, eletrônica e química, tiveram aumento no número de projetos.

No setor manufatureiro, houve alta de 38% no valor de novas iniciativas anunciadas, ante queda de 45% e 8% nos setores primário e de serviços, respectivamente.

Espera-se que em 2024 haja alguma elevação geral nos fluxos, conforme avance a estabilização da inflação e os principais bancos centrais tenham espaço para redução de juros, o que pode viabilizar a abertura de um novo ciclo global de crescimento.

O redesenho das cadeias globais de produção e valor deve favorecer nações distantes de conflitos geopolíticos e que tenham densidade produtiva suficiente. A China atrai hoje menos aportes, ao passo que os Estados Unidos buscam um renascimento industrial.

É nesse contexto que o Brasil precisa se firmar como destino atraente. Concluir a reforma dos impostos, que aproxima o país do padrão global de tributação de bens e serviços, é só o primeiro passo.

Atrair investimentos não apenas para servir o mercado interno, mas para se encaixar na geografia mundial da produção, é o meio mais eficaz de fazer avançar a produtividade e a renda.

Risco geopolítico

Folha de S. Paulo

Agitação trumpista dificulta aprovação de ajuda americana à Ucrânia e a Israel

Mesmo longe da Casa Branca, Donald Trump ainda causa estragos à política americana. Suas bravatas, baseadas em nacionalismo populista e antiglobalismo, vêm tumultuando a aprovação no Legislativo de um pacote de ajuda internacional no valor de US$ 95,3 bilhões.

Este montante seria destinado a dois países em guerra (US$ 61 bilhões para Ucrânia e US$ 14 bilhões para Israel), a parceiros que enfrentam pressões chinesas, como Taiwan (US$ 4,8 bilhões), e para assistência humanitária a civis da Faixa de Gaza e de outras áreas de conflito (US$ 9,15 bilhões).

O pacote é importante para o papel de liderança que os EUA exercem no Ocidente. Uma eventual vitória de Moscou sobre Kiev colocaria a segurança da Europa em risco, com enorme pressão sobre a Otan, a aliança militar regional.

No intuito de aplacar as resistências de republicanos, o presidente Joe Biden incluiu no plano a assistência a Israel e Taiwan; já para convencer democratas a destinarem recursos para o Estado judeu, foi colocada a ajuda aos palestinos.

Na terça (13), o pacote foi aprovado no Senado com 22 votos de republicanos, num placar de 70 a 29.
Mas o texto ainda precisa passar pela Câmara, onde a influência de Trump é bem maior e as disputas são mais acirradas —Mike Johnson, presidente republicano da Casa legislativa, já indicou que não pretende levar a proposta a votação.

Deputados alinhados a Trump insistem em vincular o auxílio externo à aprovação de medidas draconianas contra a imigração no sul dos EUA, tema da direita reacionária que dispõe de algum apoio popular. Daí o insistente discurso do ex-presidente, que tenta a reeleição, contra a entrada de mexicanos e outros no país.

Soma-se a isso sua tresloucada fala em que justificaria um eventual ataque do autocrata russo, Vladmir Putin, a nações da Otan que não destinassem pelo menos 2% do PIB à aliança militar.

Trump, como de praxe, apela ao voluntarismo e à ideologia rasteira para fins eleitoreiros. O problema, no contexto geopolítico conturbado e armamentista atual, é colocar em risco a segurança global e as democracias do Ocidente.

A semântica do golpe

O Estado de S. Paulo

Pode-se discutir se Bolsonaro de fato tentou um golpe, se apenas o preparou ou se só o acalentou, mas é indiscutível que a ruptura democrática sempre esteve no horizonte bolsonarista

Parece haver controvérsia semântica em relação à tipificação dos crimes de que o então presidente Jair Bolsonaro e alguns de seus auxiliares são suspeitos em razão da investigação da Polícia Federal sobre um suposto complô para subverter o resultado da eleição presidencial de 2022. Há quem diga que se trata de “tentativa” de golpe de Estado, o que acarretaria duras penas aos envolvidos, e há quem sustente que não houve “tentativa”, apenas conversas e etapas preparatórias, o que não configuraria crime à luz do diploma legal que trata do assunto, a Lei n.º 14.197/2021.

Nunca é demais salientar a importância da correta tipificação das acusações que provavelmente serão feitas contra Bolsonaro e os demais implicados no caso. Contudo, seja qual for a terminologia jurídica que se use no processo, o fato incontestável é que, a julgar pelo que veio à luz até agora, havia notável ânimo golpista no governo passado. Não se trata de opinião. É um fato – sobre o qual qualquer eventual controvérsia será desde logo falsa, motivada pelo cinismo habitual de quem explora as garantias constitucionais para defender projetos liberticidas de poder.

Nada disso, aliás, surpreende. Ao longo de mais de três décadas de vida pública, jamais houve por parte de Bolsonaro uma só demonstração de apreço sincero pela ordem constitucional vigente, por mais encabulada que fosse. Muito pelo contrário.

Bolsonaro é um golpista de corpo e alma. O mau militar, que deixou o Exército em desonra em 1988, nunca fez as pazes com a redemocratização do País. Desde então, Bolsonaro apenas passou a se servir da política como mero instrumento para continuar fazendo o que fora impedido de fazer nos quartéis: insuflar a baderna, tratar adversários como inimigos e usar a truculência para impor uma agenda – além, é claro, de enriquecer a família.

Por isso, é um escárnio Jair Bolsonaro convocar um “ato pacífico” na Avenida Paulista, previsto para o próximo dia 25, “em defesa do nosso Estado Democrático de Direito” – o mesmo que ele desejava abolir e o mesmo que ele gostaria de ver negado a seus adversários, como deixou claro nas reiteradas vezes em que defendeu até o fuzilamento de quem se lhe opusesse.

O vezo golpista de Bolsonaro fica transparente até mesmo nesse simulacro de defesa do Estado Democrático de Direito. A tal manifestação não se presta a defender coisa alguma a não ser o próprio Bolsonaro. O objetivo do ato é tão escancarado que nem o ex-presidente tergiversou. “Mais do que discursos, (o importante é) uma fotografia de todos vocês (...) para mostrar para o Brasil e para o mundo a nossa união”, disse Bolsonaro em vídeo divulgado por suas redes sociais. Ora, o que é isso senão uma tentativa – mais uma – de estimular a hostilidade de parte da sociedade contra o STF, que no futuro próximo haverá de julgá-lo?

No momento mais grave de toda a sua trajetória pública, Bolsonaro recorre às massas, por assim dizer, como forma de intimidação das autoridades incumbidas de investigar e julgar sua responsabilidade pela tentativa de golpe de Estado. Sob essa lógica truculenta, quanto mais gente na Avenida Paulista, mais receosas ficariam as autoridades, em particular os ministros do STF, em punir Bolsonaro. Portanto, está-se diante de mais um ato de insubmissão do ex-presidente ao mesmo Estado Democrático de Direito – que tem no devido processo legal um de seus pilares mais sólidos – que ora ele diz querer defender.

A rigor, no último domingo de fevereiro pode haver poucas dezenas de apoiadores em frente ao Masp ou dez quarteirões da Avenida Paulista ocupados por bolsonaristas. As instituições não podem usar a eventual baixa adesão ao ato para acelerar punições, tampouco se curvar às multidões. No regime republicano, impera a lei. E as autoridades devem se ater ao seu estrito cumprimento.

No mais, enquanto os juristas se entregam à discussão sobre as vírgulas das acusações contra Bolsonaro, não há dúvida de que, no julgamento moral, o ex-presidente já foi condenado há muito tempo.

Um mundo mais inseguro

O Estado de S. Paulo

Ao torpedear a Otan em busca de votos, Trump não só encoraja aventureiros autocratas e trai a confiança de democracias aliadas, como também ameaça a segurança de seu próprio povo

Em um comício recente, o ex-presidente dos EUA e favorito à nomeação do Partido Republicano para a disputa presidencial deste ano, Donald Trump, disse que “encorajaria” a Rússia a “fazer o que bem entender” com os países da Otan que não cumprem a meta da aliança de gastar 2% do PIB com defesa.

Há uma base factual para essa provocação. Desde o fim da guerra fria, os países europeus aquiesceram à complacência em relação à defesa militar. Trump não foi o primeiro presidente americano a se queixar de seu déficit de gastos. Mas uma coisa é incentivar e mesmo pressionar parceiros de uma aliança a cumprir compromissos assumidos nela a fim de fortalecê-la. Outra é torpedear o coração mesmo dessa aliança – no caso, o artigo 5, que determina que um ataque a um dos membros é um ataque a todos.

A capacidade dissuasória de uma aliança militar depende de duas coisas: o poder de agir e a vontade de agir. Críticas ao potencial militar de muitos membros da Otan são legítimas. Mas, em primeiro lugar, é preciso contextualizá-las. Desde que a Rússia anexou a Crimeia, em 2014, os gastos com defesa aumentaram em 27 dos 31 membros. Entre 2017 e 2020, o número de membros que atingiram a meta de 2% aumentou de quatro para nove. Após a invasão da Ucrânia chegaram a 11, e os gastos com equipamentos militares da Otan aumentaram em 25%. A expectativa em 2024 é de que 18 membros ultrapassem a meta de 2%.

Tudo isso ainda pode ser insuficiente. Mas, quando o principal parceiro da aliança sinaliza que pode abandonar os outros à própria sorte, ela já é de imediato enfraquecida e, na pior das hipóteses, pode desmoronar. “Qualquer sugestão de que aliados não defenderão uns aos outros mina toda a nossa segurança, incluindo a dos EUA, e põe soldados americanos e europeus em risco crescente”, advertiu o secretário-geral da Otan, Jens Stoltenberg, em resposta a Trump. Essa constatação óbvia serve de alerta às lideranças europeias e aos eleitores americanos e seus representantes.

Os europeus precisam aceitar que o risco de terem de se defender sozinhos é real e imediato. De pronto, precisam se organizar para fornecer mais armas e munição à Ucrânia. Além disso, precisam acelerar os gastos em defesa e a modernização de suas forças. Sem os EUA, mesmo um gasto de 3% do PIB em defesa pode ser insuficiente.

A desmoralização da Otan é uma ameaça à segurança dos EUA. Se os membros de uma aliança multilateral não podem contar com o apoio do país que a liderou em seus mais de 80 anos de existência no momento em que a Europa sofre sua maior ameaça desde a 2.ª Guerra, tanto maior será a desconfiança de aliados bilaterais ou informais no Oriente Médio (como Israel ou Arábia Saudita) ou no Pacífico (como Japão, Austrália e Coreia do Sul), e tanto mais encorajados se sentirão os inimigos do país, como a Rússia, a China e o Irã.

A irresponsabilidade de Trump é patente quando ele aceita pagar esse preço na expectativa de debilitar a campanha à reeleição de seu adversário, o presidente Joe Biden. Mesmo após senadores republicanos e democratas terem engendrado um pacote de apoio à Ucrânia, Israel e Taiwan condicionado a mais recursos à defesa das fronteiras contra imigrantes ilegais, os congressistas trumpistas estão sabotando essas medidas para disseminar a percepção de uma administração caótica e fracassada nas políticas domésticas e internacionais.

As democracias liberais precisam fazer seus cálculos de defesa considerando o pior dos cenários: não tanto o isolacionismo dos EUA, mas um unilateralismo imprevisível e irresponsável. Elas podem nutrir a esperança de que os eleitores americanos saibam punir quem realmente está atentando contra a segurança de seu país e traindo a confiança de seus aliados, mas precisa se preparar para o pior. Com Trump no poder, as democracias já não poderão contar com o apoio dos EUA. Os autocratas de todo o mundo se sentirão mais encorajados em suas aventuras revisionistas e imperialistas. A corrida armamentista vai se acelerar. Será, em resumo, um mundo mais perigoso.

Cruzada aérea

O Estado de S. Paulo

Campanha por tarifas aéreas baratas é a inversão de prioridades de um governo populista

O governo está movendo céu e terra para tentar baratear as passagens aéreas. A mais recente etapa dessa cruzada populista foi anunciada por Alexandre Silveira, ministro de Minas e Energia. Silveira montou um “grupo de trabalho” no Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) para estudar maneiras de reduzir o preço do querosene de aviação (QAV), administrado pela Petrobras.

O objetivo é explicitamente eleitoreiro. Silveira disse que a ideia é “democratizar a tarifa das passagens aéreas no País”, para que “a classe média e as pessoas menos favorecidas voltem a usar aeroportos, assim como aconteceu nos primeiros mandatos do presidente Lula”.

Há uma indisfarçável tentativa de fazer o País voltar no tempo, a uma época em que Lula se jactava de fazer o “pobre andar de avião”. Esse romantismo lulopetista, como toda mistificação sobre o passado, omite que os pobres, no governo Lula, até melhoraram ligeiramente de vida à custa de transferência forçada de renda, mas era um avanço insustentável – e bastou a sacolejante crise dos anos Dilma para que esses brasileiros fossem devolvidos à sua condição real de pobreza, muito distante das fantasias demagógicas de Lula. Os poucos pobres que efetivamente conseguiram viajar de avião o fizeram à base de endividamento, e a maioria absoluta continuou a viver em condições muito precárias, pois faltaram investimentos e políticas para dar a essa população condições de ascender socialmente, como boa educação e boas condições de saneamento básico.

O mesmo se dá hoje, com a agravante de que a conjuntura econômica atual é muito mais desafiadora do que nos idílicos anos de Lula 1 e Lula 2. Mas a natureza do lulopetismo tende a ignorar os fatos. Basta a vontade do demiurgo.

Ademais, o CNPE, convocado para participar da campanha do governo, tem tarefas mais relevantes, como assessorar a Presidência da República na formulação da política de transição energética. Seria, no mínimo, irresponsável comprometer o trabalho dos profissionais do CNPE na tentativa de baixar na marra o preço do combustível de aviação a um nível que permita às companhias aéreas oferecer passagens ao valor que pretende o governo.

Alçado de forma incompreensível à condição de prioridade, o tal programa Voa Brasil pode até ser bancado pelo governo, desde que o caixa da Petrobras seja recomposto por verbas públicas. É o que diz a lei. Ou seja, em última instância, a benesse seria financiada pelos contribuintes. Não há nem como chamar tal medida de “política pública”.

As companhias aéreas, por certo, estão cientes disso, mas aproveitam para reforçar o lobby por um socorro robusto ao setor. Além da queda de preço do QAV – que, é bom lembrar, desde o ano passado registra sucessivos recuos –, pleiteiam linhas especiais de crédito e reclamam das muitas ações judiciais de passageiros contra o serviço de transporte. Sensível aos apelos, o ministro de Portos e Aeroportos, Silvio Costa Filho, promete um pacote para breve. Como em todo bom programa demagógico, o pobre provavelmente não chegará nem perto de um avião, mas já se sabe quem vai na primeira classe.

Crise hídrica é ameaça mundial

Correio Braziliense

O Brasil não só abriga a maior floresta tropical do mundo, situada na Amazônia Legal, como também os dois maiores aquíferos. O primeiro, situado na Região Norte — Alter do Chão —, com capacidade de 162.520km³ e aquífero Guarani, no Centro-Oeste

Não é recente nem a primeira vez que cientistas, hidrólogos e ambientalistas alertam o mundo para os impactos das mudanças climáticas e como essas transformações afetam a vida no planeta. Reportagens do The New York Times e do jornal O Estado de S.Paulo trouxeram, ontem, nova advertência: "Metade dos reservatórios de água no mundo está secando".

Entre 1.700 aquíferos em mais de 40 países investigados, os cientistas constataram que os níveis de água subterrânea caíram em quase metade deles desde 2000 e só cerca de 7% registraram aumento dos níveis nesses últimos 23 anos. Os alertas são preocupantes e não deveriam ser ignorados pelas autoridades e sociedade brasileiras.

O professor Scott Jasechko, associado da Brend School of Environmental Science and Management da Universidade da Califórnia, em Santa Bárbara, dos Estados Unidos, e principal autor do estudo, avisa que "o declínio das águas subterrâneas tem consequências. Essas consequências podem incluir o esvaziamento de riachos, afundamento de terras, a contaminação de aquíferos costeiros pela água do mar e a secagem de poços". Essas alterações não excluem a América Latina.

O Brasil não só abriga a maior floresta tropical do mundo, situada na Amazônia Legal, como também os dois maiores aquíferos. O primeiro, situado na Região Norte — Alter do Chão —, com capacidade de 162.520km³, segundo estudo de pesquisadores da Universidade Federal do Pará. Conforme os pesquisadores, ele poderia oferecer água à população mundial por 250 anos.O segundo é o aquífero Guarani, no Centro-Oeste, que se estende pelo Sul e Sudeste do país e abrange parte da Argentina, do Uruguai e do Paraguai. Com 39 mil km³, chegou a ser considerado o maior aquífero do planeta.

Mas essa riqueza brasileira corre sério risco, devido ao desmatamento desenfreado tanto na Amazônia Legal quanto no Cerrado, biomas que têm os maiores aquíferos e o mais elevado número de nascentes das principais bacias hidrográficas. Os índices de redução das agressões ambientais não deixam de ser positivos.

Ciente da gravidade da supressão da vegetação do Cerrado, às vésperas da 28ª Conferência do Clima da ONU (COP 28), ocorrida em Dubai, o Ministério do Meio Ambiente divulgou o Plano de Ação para Para Prevenção e Controle do Desmatamento no Cerrado (PPCerrado). A meta é zerar as perdas de vegetação até 2030, ano-chave para conter o aquecimento do planeta, como previsto no Acordo de Paris.

Estancar as agressões ao meio ambiente é uma questão de vida ou morte. Os eventos climáticos extremos, resultantes do aquecimento global,têm dado este recado ao mundo há vários anos. No início deste mês, a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) divulgou o estudo Impacto das Mudanças Climáticas nos Recursos Hídricos do Brasil. O aviso aponta para um cenário preocupante, semelhante ao desenhado pelos pesquisadores estrangeiros. De acordo com o estudo da ANA, mantido o atual comportamento de todos os setores da sociedade frente às mudanças climáticas, as regiões Norte, Nordeste e parte do Centro-Oeste do Brasil poderão ter uma perda de 40% da água disponível para uso em 2040.

Embora o estudo preveja que na Região Sul, a tendência seja de um aumento, em média, de 5% da oferta de recurso hídrico, isso não será constante. Haverá momentos em que a maior quantidade de água decorrerá dos eventos climáticos extremos, provocando inundações e cheias, o que, na realidade, não seria uma conjuntura positiva. No Sudeste, os modelos climáticos, usados no estudo, não são tão claros na projeção do futuro para a região. Mas, ainda assim, prepondera cenários mais secos.

A convergência das pesquisas e estudos, de especialistas de fora e de dentro do Brasil, impõe à sociedade uma mudança de hábitos, uma educação ambiental mais rigorosa. Essa demanda exige igual comprometimento do setor produtivo, seja no campo, seja nas cidades, a fim de acelerar a transição energética e a migração para uma economia verde, oferecer ao mundo uma expressiva contribuição para conter o aquecimento global e garantir o que mais de precioso há no mundo: a vida.

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