sábado, 30 de março de 2024

Fareed Zakaria* - É preciso cuidado ao confrontar o trumpismo

O Estado de S. Paulo

O problema é como falar para um terço dos EUA que ainda acredita que a eleição de 2020 foi fraudada

A contratação e demissão de Ronna McDaniel como analista política da NBC News pode parecer apenas uma pequena tempestade midiática, mas nos obriga a reconhecer uma questão muito mais ampla desta campanha: como lidar com Donald Trump e seus apoiadores.

Recapitulando: Ronna era presidente do Comitê Nacional Republicano, em novembro de 2020, e tentou pressionar autoridades republicanas locais a não certificar os resultados da eleição. Ela também negou que a vitória de Joe Biden tenha sido justa.

Tudo isso é terrível. Já ouvimos tanta coisa a esse respeito que, às vezes, ficamos insensíveis para a sua importância. Por isso, permitam-me lembrar: Trump foi o primeiro presidente na história americana a tentar impedir a transferência pacífica do poder. Ele incitou uma multidão para intimidar seu próprio vice-presidente e os legisladores republicanos.

DILEMA. Mas o problema é: desde então, um terço dos americanos passou a acreditar que a eleição de 2020 não foi livre e justa. Estamos falando de mais de 85 milhões de adultos. Como abordá-los? Como abordar as pessoas que os conduziram a essa crença? Vamos cancelar todos eles? Nenhuma pessoa com esse ponto de vista pode ser aceita na NBC News? Acho que os executivos da NBC procuraram uma maneira razoável de trazer o ponto de vista de 85 milhões de americanos para a emissora.

Compreendo o dilema. Ronna não agiu de maneira conservadoras nem republicana, e sim antidemocrática. Ela atacou os alicerces democráticos do país. Mas a natureza da democracia liberal é tal que permitimos a todas as pessoas que expressem seu ponto de vista. Comunistas declarados já concorreram à presidência dos EUA.

MEIOS ANTILIBERAIS. As democracias liberais devem evitar a tentação de usar meios antiliberais, mesmo quando confrontadas com posicionamentos e opiniões abertamente hostis a elas. Eu me preocupo com alguns dos casos contra Trump nos tribunais.

Embora sejam tecnicamente legítimos, alguns envolvem crimes cometidos anos atrás e pelos quais ele não foi acusado na época. Teria ele sido acusado desses crimes se não tivesse se convertido em uma figura política tão controvertida?

Até o momento, as tentativas de tirá-lo da eleição através da lei fracassam. Apesar de 88 acusações de crimes graves e a reprovação de toda a elite da mídia, Trump lidera as pesquisas de intenção de voto. Afinal, seus apoiadores são movidos pela crença segundo a qual um grupo de progressistas metidos que não se importam com eles estaria governando o país.

Enquanto escrevo meu novo livro, Age of Revolutions (“A Era das Revoluções”), o desdém da nova direita populista em relação à democracia liberal é assustador. Mas a esquerda também cometeu seus excessos nessa direção.

Muitos “desejam banir a fala daqueles que defendem ideias ‘erradas’. Querem alcançar a igualdade racial por cota ou decreto. Querem usar o ensino e a arte para alcançar objetivos políticos em vez de educacionais ou artísticos”.

O populismo de direita de Trump é antiliberal, xenofóbico e conduz os EUA para becos sem saída. Mas a forma de derrotá-lo em uma democracia liberal não é usar mecanismos jurídicos para tirá-lo do tabuleiro político e cancelar aqueles que o apoiam. Temos de debater com seus aliados, apresentar posições convincentes que mostrem a possibilidade de atender suas demandas, e confrontar Trump no campo de batalha político — e vencê-lo. (Tradução de Augusto Calil)

*É colunista do ‘Washington Post.

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