Num segundo momento repensei e resolvi o oposto. Em vez de buscar outro tema e desistir do texto já iniciado, resolvi prosseguir e antecipar, para esta sexta santa, o que seria publicado no sábado de Aleluia. Creio que posso mencionar outros aspectos que desdobram o tema ou sugerir, quem sabe, algum aprofundamento. Como link, a partir do texto de Vera, basta um sim a seus pontos e argumentos.
Como podemos facilmente verificar,
acompanhando matérias de notícias e colunas, o sentimento de desconforto tem
ampla acolhida na imprensa. Uma chamada para um especial da Globo News tem
deixado clara essa linha de abordagem.
Predomina um enquadramento extrapolado da
posição de Lula de determinar a seus ministros que os ministérios não tomem
iniciativas de organizar ou patrocinar manifestações sobre a data de 31 de
março, por não achar pertinente que seu governo fique a remoer o passado.
Manifestações de conteúdo distinto ou contrário, sejam partidárias ou de
setores da sociedade civil, são tratadas de um modo geral como
"insurgências" contra a determinação de Lula, como se ele, indo além
de expedir uma diretriz de governo, houvesse proposto ao país esquecer o golpe
de 64 ("O veto de Lula à memória do golpe de 64" - Café da
manhã/Folha (Spotify), 28.03.2024).
Fomentar, por cacoete ou por viés editorial,
uma polarização desse tipo é um equívoco que não contribui ao esclarecimento
dos públicos que persistem se informando pela imprensa. Nesse sentido, o artigo
de Vera Magalhães é um dos mais preciosos contrapontos.
Uma coisa é, por exemplo, criticar-se, com
razão, o presidente por ter estado ausente e mesmo ignorado um evento
importante do Senado (celebração dos seus 200 anos) sob a suposta justificativa
de não criar problemas com os militares. Se, de fato, constata-se essa virtual
postura, cabe um sério reparo, pela pusilanimidade política e pela omissão
institucional.
Outra coisa é confundir como obstrução à
memória do golpe e da ditadura, a atitude de Lula de evitar o protagonismo do
Poder Executivo nesse tema, num contexto delicado em que militares de alta
patente estão sendo submetidos a devida investigação judicial após as forças
armadas terem sofrido um intenso assédio político da extrema-direita golpista.
Foi um processo corrosivo que resultou numa recente arquitetura canhestra de um
golpe de estado e produziu sequelas institucionais que ainda levarão tempo para
serem tratadas, como têm, efetivamente, sido. Discernir alhos de bugalhos, em
vez de confundi-los, seria um bom serviço que a imprensa prestaria para tentar
amenizar a desinformação que grassa no ambiente das redes sociais. É só um
ponto para reflexão.
Quanto ao conteúdo da nota da bancada federal
do PT, divulgada como exemplo dessas "insurgências" ("PT ignora
Lula, condena a ditadura e cobra volta de Comissão" - Correio Braziliense,
28.03.2024), penso que ela possui a habitual estreiteza de setores da esquerda
que parecem pretender não apenas o cultivo pedagógico e salutar da memória de
um passado nefasto. Têm também a pretensão de reviver esse passado como se
fosse presente. É vã tentativa de "consertar" procedimentos que as
convicções desses setores da esquerda julgam impertinentes ou equivocados.
Dentre eles ressalte-se a Lei da anistia, de 1979, a partir da qual o que era
apenas uma distensão do regime, sob controle dos seus dirigentes, tornou-se
efetiva transição democrática liderada pela oposição política democrática e
pelo movimento unitário da sociedade civil.
Demonstração maior dessa efetividade da transição democrática brasileira é a Carta de 88, o regime de liberdade política e civil, bem como o ambiente político de sentido socialmente inclusivo que ela propiciou. Para se avaliar devidamente a dimensão dessa conquista, basta comparar esse resultado da redemocratização brasileira de quase quatro décadas atrás com, por exemplo, os dramas vividos ainda hoje pela sociedade e pelo sistema político do Chile para superar condicionamentos constitucionais herdados da ditadura de Pinochet. E de modo algum se pode acusar as correntes democráticas chilenas, de um modo geral, ou sua pluralíssima esquerda, de terem descuidado da memória da ditadura de lá.
Conhecer o Museu da Memória e dos Direitos
Humanos, em Santiago, é experiência pungente no duplo sentido de mobilizar a
emoção e perfurar camadas secas ou cínicas de uma razão instrumental. Tudo está
ali documentado, sem meios termos. A eloquência dos fatos, revelados em si
mesmos, dispensa qualquer discurso revanchista contra instituições perenes que
temporariamente se envolveram e comandaram aquela tragédia nacional.
Vale lembrar que o museu e todas as luzes que
lhe dão vida resultam do trabalho de uma "Comissão da verdade e da
reconciliação". O último termo do título parece dizer corajosamente
tudo sobre o sentido generoso e civilizatório que orientou a comissão. É um
exemplo a ser seguido, tendo-se, contudo, o realismo de saber que intenções não
bastam e que é preciso estar atento a idiossincrasias de cada lugar. Se os
democratas chilenos, apesar dessa largueza de visão, ainda não puderam superar
as marcas de um mal que foi feito ao seu país por um golpe de violência
inaudita na sua história, o que dizer sobre o desafio posto aos democratas
brasileiros de lidar com os condicionamentos de um golpismo e de um populismo
endêmicos que cortam a cultura política da nossa república, afetando variadas
famílias ideológicas, desde bem antes, durante e até bem depois do regime de
1964?
É razoável pensar que de nós se exige
largueza de visão política e histórica ainda maior, capaz de estar sempre
vigilante para possibilidades, até aqui não completamente descartáveis, de
êxito futuro de uma coalizão golpista entre algum populismo e o militarismo. Se
a de Bolsonaro não deu certo, é bom lembrar que a de Vargas, lá atrás, em
associação com militares simpatizantes do fascismo, obteve êxito, com o advento
do Estado Novo.
A postulação, portanto, de reinstalação de
uma comissão da verdade e de investigação sobre desaparecidos (que está
presente na nota do PT) ganhará sentido positivo se acompanhada de um
reenquadramento do sentido equivocado que entre nós limitou aquela Comissão da
Verdade, enquanto durou. O potencial regenerador do cultivo da memória é o de
iluminar o presente e o futuro e não o de "acertar contas" com o
passado, promovendo justiça corrente ou reorientação política sobre processos
concluídos. Uma consciência de preservação democrática requer encarar esses
processos como consolidados, até para que o País não se torne vulnerável a
novas aventuras como a que nos colocou à beira de um abismo entre 2018 e 2022.
*Cientista político e professor da UFBa.
Um comentário:
Pois é.
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