sábado, 30 de março de 2024

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

Macron usa clima para justificar protecionismo

Folha de S. Paulo

Presidente francês ataca acordo entre Mercosul e UE, sob pressão do setor rural de seu país, que teme competição externa

Muito amigável na visita de três dias ao Brasil, o presidente da FrançaEmmanuel Macron, foi também claro a respeito de um tema essencial da agenda econômica. Rechaçou sem meias palavras os termos do acordo de livre comércio entre Mercosul e União Europeia, defendendo novas negociações a começar do zero.

Para o mandatário francês, o acordo negociado há mais de 20 anos ficou antiquado e seria péssimo para as duas partes, pois olharia para o passado e não levaria em conta a biodiversidade e o clima.

Macron disse que a França não poderá abrir seu mercado agrícola a produtores externos que não estejam sujeitos às mesmas exigências ambientais. Não se disfarça o protecionismo, posição tradicional francesa que sempre foi o maior obstáculo nas negociações.

Embora as tratativas não sejam bilaterais e ocorram entre os dois blocos, a oposição de membros dificulta ou inviabiliza uma conclusão.

O momento político também não é propício na Europa. Vários países enfrentam protestos maciços de agricultores contra a agenda climática, que obriga o setor a reduzir emissões de carbono e aumenta os custos da produção local já pouco competitiva.

Qualquer retomada de negociação, se houver, deverá ficar para depois das eleições para o Parlamento Europeu, em junho, que parece indicar um crescimento da direita mais protecionista.

Com tal dinâmica, de todo modo, é cada vez menos provável a criação do bloco comum, que abarcaria 720 milhões de pessoas e 20% do PIB mundial. Estudo publicado pelo Ipea indica que o acordo ampliaria em 0,46% o PIB brasileiro entre 2024 e 2040, além de elevar os investimentos em 1,5%.

Macron pode ter razão em um aspecto —novos acordos de livre comércio com foco em redução de tarifas podem ser insuficientes no contexto mundial atual. Isso não pode ser pretexto, no entanto, para evitar a abertura econômica benéfica para a coletividade.

O acirramento da competição geopolítica força a uma reordenação de cadeias produtivas, enquanto a emergência climática demanda ação coletiva. Tais realidades inescapáveis abrem novas opções para engajamento e cooperação que precisam ser consideradas.

Diante da imbatível competitividade da agricultura brasileira, que ganha o mundo e não tem na Europa nem de longe o mercado principal, interessa ao país a esta altura negociar oportunidades de integração produtiva por meio de maiores investimentos também na industria e nos serviços.

A conclusão da reforma tributária que alinha o Brasil às melhores práticas globais favorece essa agenda. As negociações precisam continuar sem perder de vista afinidades entre os dois blocos.

Os nem-nem

Folha de S. Paulo

Taxa de jovens sem estudo e trabalho demanda foco no ensino técnico e parcerias

Sem estudo, sem trabalho. Nesse limbo ocioso encontram-se 19,8% dos brasileiros entre 15 e 29 anos, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad) Educação de 2023.

O poder público deve implementar políticas para lidar com o fenômeno, que impacta não apenas a renda de 9,6 milhões de pessoas como produz efeitos no longo prazo —quando se considera o envelhecimento da população brasileira e, consequentemente, o processo de perda do bônus demográfico.

Segundo levantamento da OCDE de 2023, entre 42 países, o Brasil tem o sexto maior índice de jovens entre 18 e 24 anos que não estudam nem trabalham. Enquanto a taxa média da entidade é de 15%, a nossa é de 24,4%. Entre as mulheres, o índice aumenta para 30%; já entre os homens, cai para 18,8%.

Essa discrepância também foi verificada na Pnad Educação, com 25,6% da população feminina entre 15 e 29 anos nessa situação, ante 14,2% da masculina.

A principal causa do abandono escolar é a busca por emprego. O problema é que, com formação precária, os jovens enfrentam dificuldades para conseguir contratação. Assim, é necessário buscar meios de manter os alunos na rede de ensino e acelerar a transição entre estudo e trabalho.

A OCDE preconiza o chamado VET (vocational education and training): programas de orientação vocacional aliados a parcerias entre escolas, empresas e indústria para treinamento e contratação de aprendizes.

É fundamental, portanto, a integração do ensino técnico ao regular, e o Brasil peca nesse quesito.

A meta do Plano Nacional de Educação (PNE) de 2014 era triplicar as matriculas no ensino profissionalizante de nível médio até 2024, atingindo cerca de 4 milhões de alunos. Mas o Censo Escolar 2023 mostrou que não mais de 2,4 milhões cursavam essa modalidade.

Em tramitação no Congresso, a nova versão da reforma do novo ensino médio incentiva a educação profissional. Não é panaceia, mas um passo necessário para mitigar o atraso do país nessa seara.

Câmara tem de referendar prisão de Chiquinho Brazão

O Globo

Decisão de manter preso o deputado acusado de mandar matar Marielle foi unânime no Supremo

A Câmara dos Deputados deveria acelerar a análise e referendar a prisão do deputado federal Chiquinho Brazão (ex-União-RJ), detido no último domingo em operação da Polícia Federal (PF), sob acusação de ser um dos mandantes — ao lado do irmão Domingos Brazão — do assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL) e de seu motorista, Anderson Gomes. Chiquinho está na Penitenciária Federal de Campo Grande, em Mato Grosso do Sul. Pela Constituição, a manutenção de sua prisão precisa do aval da Câmara.

Em seu parecer, o relator Darci de Matos (PSD-SC) defendeu a prisão decretada pelo ministro Alexandre de Moraes e confirmada por unanimidade pela Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal. Para Matos, além de ela estar “adequadamente fundamentada”, estão presentes “os requisitos constitucionais do flagrante e da inafiançabilidade”. No entanto a análise na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara acabou adiada por pedidos de vista dos deputados Gilson Marques (Novo-SC), Fausto Pinato (PP-SP) e Roberto Duarte (Republicanos-AC), sob crítica de parlamentares de esquerda.

O próprio presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), endossou o adiamento. Ao comentar o pedido de vista, afirmou que a prisão de Chiquinho é um caso “difícil”, “sensível” e “complexo”. Afirmou que o parlamentar permanecerá preso até que o plenário da Casa se manifeste em votação aberta. “Todos tratam esse assunto com o máximo de cuidado pela repercussão que sempre teve”, disse Lira.

Por mais que se trate de um caso intrincado, com desdobramentos dentro e fora do país, não há motivo razoável para adiar a decisão. Chiquinho é suspeito de um crime grave, cometido, segundo a PF, com a colaboração do delegado Rivaldo Barbosa, ex-chefe de Polícia Civil do Rio e ex-titular da Delegacia de Homicídios. Pela trama descrita no inquérito, meticulosamente planejada ao longo de meses, os acusados contrataram pistoleiros e chegaram a infiltrar um agente no PSOL para acompanhar Marielle. Os parlamentares têm a seu dispor quase 500 páginas do relatório policial, cujo sigilo foi suspenso por Moraes. Os detalhes estão todos lá.

Em contrapartida, o União Brasil não esperou nem o dia seguinte para expulsar Chiquinho. Na própria noite de domingo, a Executiva Nacional da legenda se reuniu virtualmente e tomou a decisão de forma unânime. Até o Conselho de Ética da Câmara, que não prima pela celeridade, fez andar o pedido de cassação apresentado pelo PSOL na segunda-feira. Segundo o presidente do conselho, Leur Lomanto Júnior (União-BA), o colegiado deverá apreciar o tema na próxima sessão, prevista para ocorrer na primeira quinzena de abril.

Ainda que o corporativismo costume influenciar decisões sobre parlamentares acusados na Justiça, os deputados precisam considerar que o assassinato de Marielle é também um crime contra a política. A quinta vereadora mais votada no Rio, eleita com 46.502 votos, foi silenciada a tiros numa emboscada, em pleno exercício do mandato. Os motivos apontados pela PF — sua atuação contrariava interesses da milícia — estão vinculados à atividade legislativa. O mínimo a esperar é que os parlamentares sejam os primeiros a rechaçar quem atenta contra a política e contribui para conspurcá-la.

Chuvas mostram que governos estão despreparados para eventos extremos

O Globo

Cerca de 30 morreram no Rio e no Espírito Santo, a maioria por não ter sido retirada a tempo de áreas de risco

As cerca de 30 mortes no Espírito Santo e no Rio de Janeiro em consequência das chuvas que castigam o Sudeste desde o dia 23 revelam que, apesar dos alertas sobre riscos iminentes, os governos ainda se mostram despreparados para enfrentar fenômenos climáticos extremos, cada vez mais frequentes e letais.

Ninguém pode alegar que não sabia da previsão de chuvas torrenciais. No dia 21, o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) emitiu avisos de “grande perigo” para Região Metropolitana de São Paulo, Litoral Norte paulista, todo o Estado do Rio, sul de Minas Gerais e sul do Espírito Santo. O Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden) advertiu sobre a alta chance de inundações e deslizamentos. Chegou a afirmar que, na Região Serrana do Rio, havia condições propícias a chuvas semelhantes às de 2011, as mais arrasadoras já registradas, com saldo de mais de 900 mortos.

O volume de chuva no Sudeste foi mesmo excepcional. Em algumas cidades, choveu em 24 horas o esperado para o mês inteiro. Petrópolis registrou mais de 200 deslizamentos. Estradas foram fechadas. Era um cenário previsto, mesmo assim moradores foram deixados em áreas sujeitas a desastres.

É verdade que algumas cidades acionaram protocolos de emergência. No Rio, a Prefeitura suspendeu aulas na sexta-feira, decretou ponto facultativo e incentivou os moradores a evitar deslocamentos. Felizmente, na maior parte da capital fluminense não aconteceu o dilúvio esperado. Isso não significa que as medidas preventivas não devessem ter sido tomadas. Apenas respostas ágeis podem evitar o pior quando existe alta probabilidade de catástrofe.

Na Região Serrana fluminense, repetiram-se as cenas trágicas de sempre. Em Petrópolis, ao menos quatro pessoas de uma mesma família morreram quando a casa foi soterrada por um deslizamento. Em todo o estado, o número de mortes chegou a nove. No sul do Espírito Santo, as chuvas mataram pelo menos 20 moradores (sete continuavam desaparecidos) e produziram cenas dramáticas de veículos arrastados pelas águas, carros empilhados e casas submersas. Mais de dez municípios decretaram estado de emergência, e 20 mil moradores estão fora de casa.

Segundo o Cemaden, o Brasil tinha no ano passado cerca de 8,2 milhões de habitantes vivendo em áreas suscetíveis a inundações ou deslizamentos. Evidentemente, não é um problema que se resolva de uma hora para outra. Primeiro, porque é fruto de descaso de sucessivos governos durante décadas. Segundo, porque demanda soluções de médio e longos prazos, como políticas habitacionais consistentes.

Danos materiais são em geral inevitáveis diante da força das tempestades, mas é possível preservar vidas, retirando os moradores das áreas mais vulneráveis antes da chuvas. Nisso o país tem fracassado miseravelmente, como mostram repetidas tragédias em que só mudam nomes e endereços. Os alertas de temporal do Inmet para os próximos dias agora se concentram nas regiões Sudeste, Norte e Nordeste. Espera-se que sejam ouvidos.

 A rua da esquerda está deserta

O Estado de S. Paulo

O esvaziamento das recentes manifestações convocadas pela esquerda vai além do erro de uma agenda fragmentada e dispersa: é também um sintoma da ausência de boas ideias

A esquerda brasileira “morreu como esquerda”, e a extrema direita é hoje a única força política real no Brasil. Esse diagnóstico, feito por um dos principais intelectuais de esquerda, o professor da USP Vladimir Safatle, tem produzido um animado debate entre seus pares. Não faltaram reflexões sobre a tese do falecimento, por si só polêmica, nem sobre as razões para a falta de norte da esquerda, os caminhos para superá-la e até embates delirantes sobre a recusa a “gerir a crise do capitalismo” – sim, houve quem sugerisse que a esquerda morreu porque se limitou a conviver com o capitalismo, como se a alternativa a isso pudesse ser muito diferente das ditaduras como a Rússia de Putin ou a Venezuela de Maduro, para citar dois tiranos que contam com a admiração embevecida da esquerda e o beneplácito do presidente Lula da Silva.

Caso se leve realmente a sério, contudo, a esquerda tem mais um rico objeto de análise para discutir seu passamento ou sua desorientação: o notável esvaziamento das manifestações convocadas em todo o Brasil no último dia 23 de março.

Foram constrangedoras as cenas produzidas nos atos convocados pela frente que abriga PT, PCdoB, PSOL, sindicatos e movimentos sociais. Entre as 22 cidades programadas para abrigar manifestações, Salvador teve a maior mobilização, reunindo modestas 1,7 mil pessoas, segundo cálculo do grupo de pesquisa da USP, especializado em medições dessa natureza. No Largo São Francisco, em São Paulo, viu-se um público estimado em até 1.300 pessoas. Houve capitais com algumas poucas centenas de pessoas, e isso no pico da manifestação. A palidez dos atos foi reafirmada pela ausência das maiores lideranças da esquerda – não compareceram a nenhuma manifestação nem o presidente Lula da Silva nem governadores, parlamentares ou ministros relevantes.

Era um fracasso anunciado desde que a frente mais extremista da esquerda arquitetou os atos como resposta à multitudinária manifestação recentemente promovida pelo bolsonarismo na Paulista. Neste caso, a derrota da esquerda não se deu somente nos números – foi também conceitual. Enquanto os bolsonaristas tinham uma agenda enxuta e bem definida – a defesa de Bolsonaro e dos golpistas –, os atos do PT e de seus satélites foram marcados pela dispersão de propósitos. Havia de tudo no receituário lulopetista, da defesa da “prisão de Bolsonaro” à “ditadura nunca mais”, em memória dos 60 anos do golpe militar; do discurso cínico “contra o genocídio na Palestina” a uma difusa “defesa da democracia” – totalmente seletiva, é claro.

Não se trata de um fracasso pontual. É de um tempo distante o protagonismo da esquerda na ocupação das ruas. Sua liderança existiu enquanto sindicatos formavam a espinha dorsal dos movimentos sociais que empurraram a pauta da democracia, a partir do fim da década de 1970, e os protestos contra Fernando Collor, nos anos 1990. Essa força se diluiu quando os sindicatos perderam musculatura pela incapacidade de atualização de suas pautas e pelo fim das benesses financeiras que eram geradas pelo imposto sindical. O PT também exibiu força enquanto se protegeu sob o manto da virtude oposicionista, um messianismo desmoralizado após os ruidosos casos de corrupção dos mandatos de Lula e Dilma Rousseff. Para completar, as Jornadas de Junho de 2013 e o “Fora, Dilma”, em 2015 e 2016, mostraram que as ruas não tinham mais dono a partir dali.

Pesaram para isso também a captura do campo progressista pela pauta identitária, agenda que hoje mais afasta do que atrai progressistas moderados, além das próprias contradições petistas: o envelhecimento do seu ideário, a incapacidade de perceber que as clivagens na sociedade não permitem mais tentar se mostrar como o único representante dos interesses nacionais e a escandalosa associação petista com ditadores. Enquanto achar que sua pauta se confunde com o petismo e planejar seus atos com base do bolsonarismo, a esquerda seguirá produzindo vexames como o que se viu no vazio de março. A ausência nas ruas é um dos sintomas da ausência de boas ideias.

Democracia exige moderação

O Estado de S. Paulo

A agonia do PSDB é o sintoma de uma política que legitima o extremismo e desabona o que deveria ser uma premissa para a democracia: forças centristas, democráticas e responsáveis

Tomado por divisões e extremismos de toda ordem – não arrefecidos mesmo após quase 18 meses da mais acirrada e violenta disputa presidencial desde a redemocratização –, o Brasil precisa urgentemente de um centro democrático, moderado, responsável e viável eleitoralmente. Enquanto as principais forças se resumirem ao lulopetismo e ao bolsonarismo, sobretudo com seus respectivos radicais livres dispostos a deslegitimar qualquer esforço de diálogo e união, seguiremos em meio a escombros ideológicos e partidários. Não nos enganemos: nem o presidente Lula da Silva nem o antecessor, Jair Bolsonaro, dois líderes inegavelmente populares, serão capazes de inspirar valores e aspirações comuns à maioria dos brasileiros.

Trata-se de uma tarefa especialmente complexa para um país fraturado e mais ainda para quem gosta, como eles, de usar dissensos como arma eleitoral.

Se de Lula e Bolsonaro pouco ou nada se pode esperar para atender a essa necessidade, a perspectiva se torna ainda mais sombria quando se assiste ao ocaso do PSDB – partido que, durante mais de 20 anos, funcionou como uma espécie de farol do centro democrático, a possibilidade concreta de destruição de muros que separam esquerda e direita, e o mais próximo que chegamos de uma social-democracia moderna e reformista, defensora de princípios liberais e avessa tanto ao populismo personalista quanto ao fetiche do estatismo. Em São Paulo, Estado onde governou numa sequência ininterrupta de 28 anos, no Congresso, onde suas bancadas vivem numa espiral descendente, ou em outros Estados País afora, o PSDB é hoje um constrangedor exemplo de agonia lenta e constante. Com ele agoniza também o centro de que precisamos.

O necrológio tucano ganhou adendos consideráveis nos últimos dias. O líder do partido no Senado, o senador Izalci Lucas (DF), está oficializando sua migração para o PL de Bolsonaro, deixando como representante do PSDB na Casa apenas o amazonense Plínio Valério (AM). Em 1998, auge do poder tucano e ano da reeleição do então presidente Fernando Henrique Cardoso, o partido tinha 16 senadores. Na Câmara, depois de chegar a ter 99 deputados, a legenda alcançou sua menor bancada na história: 13. Recentemente perdeu um, o deputado Carlos Sampaio (SP), que foi para o PSD. Em São Paulo, vereadores preparam uma debandada e ameaçam migrar para MDB, União Brasil, PSD, Podemos e PL – sedimentando um enfraquecimento que já se via nas prefeituras pelo interior. Enquanto isso, o partido ficou engolfado pelo debate sobre o apoio ou não ao prefeito Ricardo Nunes (MDB).

São variadas as razões para a queda tucana, mas a principal delas remete à covardia instalada nos seus quadros sob inspiração de Aécio Neves. Coube ao ex-governador, ex-senador e hoje deputado a tarefa de abrir as rachaduras que mais tarde fariam o PSDB desmoronar. Em 2014, ao perder a disputa presidencial para Dilma Rousseff, Aécio fez seu partido esperar apenas quatro dias para gritar oficialmente contra o resultado. A ação jurídico-eleitoral era marota: por um lado, aliviava a barra do Tribunal Superior Eleitoral, argumentando não pôr em dúvida a lisura da apuração; por outro, justificava o gesto com “denúncias e desconfianças” surgidas nas redes sociais. Vindo de uma linhagem de políticos mineiros marcados pela conciliação – a começar pelo seu avô, Tancredo Neves –, Aécio ajudou a plantar a semente do golpismo que não aceita a derrota. O que veio a seguir foi seu epitáfio. Na oposição ao governo Dilma, tornou-se um espantalho do PT. No governo de Michel Temer, fez a defesa envergonhada das reformas de então. Em seguida, converteu-se em fantoche de Bolsonaro. Não foi o único.

“Na política”, dizia Tancredo Neves, “são as ideias e não os homens que brigam.” Ignorando tal lição, partidos e lideranças legitimam forças extremistas que veem as disputas eleitorais e partidárias como batalhas em que derrotados devem ser eliminados da vida pública. Mas só a existência de forças centristas, moderadas e responsáveis é capaz de deslegitimar tais métodos e inspirar a sociedade a voltar a acreditar que diferença não é sinônimo de conflito.

Viagem pitoresca a Pindorama

O Estado de S. Paulo

Havia um bode na sala da pajelança de Lula e Macron: o acordo UE-Mercosul, ao qual se opõem

O presidente Lula andou ciceroneando o presidente francês, Emmanuel Macron, num tour pelas terras brasileiras. Na agenda, visitas a comunidades ribeirinhas e fábricas de chocolates orgânicos, convescotes com caciques e jantares com celebridades das artes e esportes.

Além de promover esse rebranding dos estereótipos sobre o país tropical do samba e futebol, os dois batizaram um submarino nuclear construído sob uma parceria de 2008. A primeira-dama quebrou uma garrafa de espumante no casco, enquanto os presidentes faziam apelos à paz mundial e prometiam ampliar a “parceria estratégica”. Ainda que não seja claro como os investimentos bélicos se coadunam com a doutrina de defesa de Lula – “quando um não quer, dois não brigam” –, ele fez bem em cobrar a França por relutar em transferir a tecnologia acordada a um aliado pacífico de longa data.

Os presidentes propagandearam um “plano” para arrecadar ¤ 1 bilhão para a bioeconomia e preservação da Amazônia. Não é a primeira promessa a ir para o papel e, se não sair de lá, não será surpresa. Sob os holofotes da Cúpula do Clima em Dubai, Macron prometeu ¤ 500 milhões ao Fundo Amazônia. Nos bastidores, sua Chancelaria indicou que só teria ¤ 1 milhão para dar agora.

Entre velhos projetos e promessas incertas, a pajelança fez o possível para disfarçar o bode na sala: o acordo de livre comércio Mercosul-União Europeia. Como se sabe, Macron é o maior entrave à sua ratificação na Europa. E Macron reiterou seu recado: “É um péssimo acordo”, supostamente por desconsiderar “a biodiversidade e o clima” – senha de dez em dez governos franceses para barrar o ultracompetitivo agro brasileiro.

Ainda outro dia, o Palácio do Eliseu foi cercado por tratores, e Macron recuou de sua proposta de ampliar leis de proteção ambiental na França. Na agenda concertada com o Brasil, nenhuma visita a uma fazenda de soja ou gado, nenhum encontro com comitês de agrônomos e ambientalistas, nenhum dossiê comprovando os altos índices de sustentabilidade do agro ou os ganhos do acordo para consumidores brasileiros e franceses.

Macron não diz, mas é indisfarçável sua intenção de blindar os fazendeiros franceses. Lula não disfarça que quer excluir a concorrência europeia das compras governamentais brasileiras para blindar a indústria, à revelia dos próprios industriais. Mais do que todas as promessas assistencialistas e ambientalistas dos presidentes somadas, o acordo seria um poderoso instrumento para estimular a produtividade, gerar emprego e renda e ajudar os povos amazônicos a sair da miséria, ambiente tão fértil aos crimes ambientais. Mas, quando dois não querem, não há acordo.

Os takes fotográficos dos presidentes saltitando de mãos dadas na floresta talvez ajudem Macron a cativar o jovem eleitorado ambientalista francês, e Lula, os jurados do Prêmio Nobel. Mas resta a questão: foi um encontro de chefes de Estado ou de egos? Admitindo-se, pelo benefício da dúvida, o primeiro, foi inócuo. A claque lulista vai continuar repetindo seu mantra: o Brasil voltou. Mas voltou para onde sempre esteve, fechado e subdesenvolvido e, se depender de Macron, continuará aí.

Parceria do Brasil com a França é estratégica

Correio Braziliense

Brasil e França, segundo Lula, trabalharão juntos para promover, pelo debate democrático, uma visão compartilhada de mundo

Mesmo sem uma solução para o impasse em torno do acordo do Mercosul com a União Europeia, a visita do presidente da França, Emmanuel Macron, ao Brasil foi um dos mais importantes passos dados pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva na sua política externa. Deu continuidade e ampliou uma parceria estratégica iniciada pelo próprio Lula, em 2006, durante o governo do presidente Jaques Chirac.

Naquela ocasião, a França reconheceu o Brasil como um ator global e aspirante legítimo ao Conselho de Segurança da ONU. Estabeleceram-se iniciativas conjuntas para compartilhamento de recursos materiais, tecnológicos, humanos ou naturais, nas áreas militar, espacial, energética, econômica, educativa e transfronteiriça (entre a Guiana Francesa e o Amapá).

Brasil e França, segundo Lula, trabalharão juntos para promover, pelo debate democrático, uma visão compartilhada de mundo: "fundamentada na prioridade da produção sobre a finança improdutiva, da solidariedade sobre o egoísmo, da democracia sobre o totalitarismo, da sustentabilidade sobre a exploração predatória". Durante a visita de Macron, Lula assinou 21 acordos de cooperação com a França, em áreas como meio ambiente, inteligência artificial, direitos humanos e igualdade de gênero.

Destacam-se a criação de um centro de pesquisas da biodiversidade amazônica e a cooperação jurídica entre os países em matérias penais. Há ainda a previsão de uma parceria entre o Parque Amazônico da Guiana, na Guiana Francesa, e o Parque Nacional das Montanhas de Tumucumaque, no Amapá e no Pará. Já havia uma grande parceria militar na construção da nova frota de submarinos da Marinha do Brasil, cuja terceira embarcação foi lançada durante a visita, o Tonelero, e que inclui um submarino com propulsão nuclear com armamento convencional. A tecnologia do reator é brasileira.

Como o programa de construção de submarinos (Prosub), o Centro Franco-Brasileiro de Biodiversidade Amazônica, na Universidade da Amazônia, é fruto de negociações iniciadas durante o governo de Nicolas Sarkozy, quando o ex-presidente francês visitou o Brasil. Agora, chegou a um novo patamar, ao assegurar que parte dos benefícios provenientes das pesquisas seja compartilhada com as comunidades da região amazônica.

Lula e Macron também assumiram um compromisso institucional para promover a integração entre o parque amazônico da Guiana Francesa e o parque Montanhas do Tumucumaque, a maior reserva de floresta tropical do mundo. Localizado no Amapá, com uma porção menor no Pará, o parque abrange uma área de 3,8 milhões de hectares. A unidade faz fronteira com as florestas da Guiana Francesa. Com o acordo, a intenção é transformar essas áreas em um corredor florestal, protegendo mais de 7 milhões de hectares.

Transição ecológica e energética, bioeconomia, agricultura, tecnologia digital, inteligência artificial, direitos humanos e igualdade de gênero fazem parte da agenda de cooperação e ajudam a superar os obstáculos que impedem a França de apoiar a assinatura do acordo entre a União Europeia e o Mercosul. A cooperação jurídica em matéria penal e o combate ao garimpo ilegal na fronteira, que é a maior da França com outro país, e a cooperação em relação a minerais estratégicos, materiais críticos e segurança energética também são de grande importância.

Mais de 1.150 subsidiárias de empresas francesas estão estabelecidas no Brasil, onde geram 520 mil empregos e 61 bilhões de euros em faturamento. A França é um dos principais investidores no Brasil, com 41,3 milhões de euros em 2022. Entretanto, as relações comerciais entre os dois países são assimétricas.

No ano passado, a França exportou 4,4 bilhões EUR para o Brasil, que ocupa o 27º lugar entre seus clientes. O Brasil exportou para a França 4 bilhões EUR, é o 34º lugar entre os fornecedores da França. O problema somente pode ser resolvido com o acordo entre a União Europeia e o Mercosul. A dificuldade é mais econômica do que política: os agricultores franceses temem a concorrência do agronegócio brasileiro e pressionam Macron.

 

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